Gulbenkian – Newsletter #179 agosto 2016

August 5, 2016 blog 0 Comments

Fui daquelas crianças que alternavam o prazer de desmanchar os brinquedos para lhes perceber o mecanismo e espalhar no chão as rodas dentadas que instantes antes lhes davam ânimo, mesmo arriscando não conseguir reverter a autópsia improvisada, com as brincadeiras de futuro adulto projectado ao volante imaginário de um carro de família, copiando rotinas burguesas de primeiro mundo. Pai beija a esposa ao sair de casa, leva os filhos ao colégio no caminho para o emprego de prestígio no centro da cidade.

Talvez por isso, desde a primeira vez que assisti aos concertos da Orquestra Gulbenkian, tenha sentido em partes iguais o encanto da música produzida e a curiosidade sobre o que ficava e se passava para lá das portas dos bastidores. O fascínio pela música levou-me a ser professor no Conservatório Nacional, a curiosidade com as rodas dentadas dos bastidores levou-me ao cinema e à fotografia.

Foi isso que me levou a filmar três documentários para a Fundação, “Veradardz” (2011), “Intervalo” (2012) e “op.ção” (2016), sempre com o foco mais intenso na vida para além dos holofotes, a parte submersa do iceberg, a homenagem aos que nunca recebem aplausos mas tanto os merecem.

Fotografia: Camarim do Maestro Lawrence Foster, depois de uma manhã de gravações com a Orquestra Gulbenkian. Armário com duas camisas usadas, à espera que os serviços de lavandaria as levem, lavem e engomem. A cor castanha avermelhada, identidade da instituição, nas portas de correr; o amarrotado do tecido, vincado pelo cinto que prendia as calças; o amolecido da mangas e colarinho, suadas pela urgência de dar vida a Otello de Verdi. Palco e bastidores. Visível e invisível.