Um semi-deus passeando pela brisa da noite

March 21, 2016 blog, India 0 Comments

Há um ano, quando me perguntavam se estava a gostar de Varanasi, respondia que amava e odiava na mesma proporção, alternando várias vezes durante o dia. Incomoda-me a poluição, o trânsito infernal, o ruído, a sobrelotação e a imundice das ruas, factores que tenho verificado estarem a piorar de ano para ano. O que me atrai é o emaranhado de ruelas e becos, estreitos como dois braços abertos, a facilidade de me perder se sair da minha zona de conforto, a genuinidade do contacto humano, quando distingo os esquemas para enganar turistas da generosidade e vontade de comunicar das pessoas.

Cheguei a Varanasi há seis dias e não tenho conseguido adaptar-me ao fuso horário. São cinco horas e meia de diferença – mais tarde em relação a Portugal Continental – e o corpo não dorme e a cabeça não pára de fazer contas de subtrair.

Aproveitei para explorar os ghats à noite. Às cinco da manhã – uma hora e meia antes do sol nascer – às quarto, às três. Houve uma noite que fiz inteira na rua. É difícil dormir de dia, mas vou dormindo, duas horas aqui, três ali, dando à minha cabeça uma sensação de tempo ainda mais estranha que o lugar. Os dias parecem estilhaçados, estes seis dias parecem mais de duas semanas.

Vaguear à noite pela cidade e pelos ghats – as escadarias que ligam a cidade ao Ganges – fez-me perceber que é mais fácil para mim gostar de Varanasi assim, sem o calor, as motas, buzinas e tubos de escape, sem a multidão de turistas e os esquemáticos caça-rúpias. As pessoas que encontro nestas divagações nocturnas tendem a olhar para mim sem ser como turista, dando possibilidade, apesar do nosso precário domínio da língua comum, a falar das coisas com mais calma. Gosto também do silêncio e da solidão opcional, como se me sentisse um vigilante da cidade, a lidar tu-cá-tu-lá com os milhões de deuses que aqui habitam.