A viver em São Paulo
Ainda não conheci a I.. A I. divide casa comigo desde ontem, por mais estranho que me pareça – e à I. também, provavelmente – dizer que a casa é dividida. É estranho falar em dividir uma casa que não é minha, onde se chega de repente e em que nada do que existe é meu, não fazer parte da minha memória nenhuma marca ou vestígio de vida existente nas paredes, móveis, prateleiras, armários ou mesas. A I. vive nesta casa há uns meses, alugou-a à F., e agora vê-me, de repente, chegar do Rio e ocupar o outro quarto. E, de um dia para o outro, o conceito é dividir a sala, cozinha e casa de banho. Mas este é o principal modelo de habitação da maior parte das pessoas que tenho conhecido desde que cheguei ao Brasil. O preço das locações subiu muito nos últimos anos e os ordenados não acompanharam a inflação.
Ainda não conheci a I., mas já trocámos mensagens no facebook, para nos apresentarmos e eu lhe dizer que sou um tipo sossegado e discreto, que ela nem sequer vai dar pela minha presença em casa. A I. é muito simpática no facebook. Só aí falámos ainda, por mensagem. Ontem quando chegou já eu estava a dormir e saiu antes de eu acordar. Não sei me evita ou se trabalha muito. Ou se se diverte mais do que eu. Hoje deixou-me um bilhete colado na porta do quarto – querida – a a explicar onde estão as toalhas e roupa de cama extra.
Passei a manhã na sala que era ocupada só pela I. e que agora é só ocupada por mim. A sala olha para mim com tolerância e aceitação. As casas não têm dono, aceitam-nos. Vêem passar inquilinos, hóspedes, são usadas, estimadas, amadas ou odiadas. Há quem as queira comprar e nelas morrer. Há casas que morrem primeiro que os donos, por acidente ou velhice. Outras são abatidas porque quem as comprou ama mais o lucro que terá na venda do lote para construção de um mamarracho do que a casa que comprou, por mais bonita que seja. Mas esta, onde estou, de certeza que não morrerá antes de nos despedirmos.
Passei a manhã na sala, a ver a vista de casas e prédios, esta mistura de tipologias, personalidades e almas tão grande que dá graça a São Paulo. Apeteceu-me fotografar a cores. Senti-as ligeiramente esbatidas e frias, por estar a chover sem parar desde que cheguei. Passei a manhã recostado no sofá, debruçado na janela, sentado à mesa, a pesquisar produtoras paulistas a quem ligar e me apresentar para uma entrevista, continuando a acreditar que as minhas qualidades são valiosas e raras e que vale a pena apostar em mim para fazer documentários, apesar de me ser tão difícil explicar a quem pergunta porque é que dos meus dois últimos filmes um não chegou a ser estreado e outro, apesar das excelentes críticas que teve, só foi exibido duas vezes e guardado na gaveta a seguir para que ninguém mais pergunte por ele.
Depois de telefonemas e emails, fui almoçar ao bairro da Liberdade, conhecido pela enorme comunidade japonesa que nele habita e trabalha. Comi sushi a peso, e percebi que a razoabilidade do preço traz mais felicidade do que a da comida. Comprei um chapéu de chuva por 30 reais, porque chove sem parar em São Paulo, como quem choraminga, enxuga o rosto húmido, desaba num pranto e passa depois para um gemido antes de reiniciar o ciclo. Ao passar um viaduto que sobrevoa um dos principais eixos viários desta cidade, ainda enxarcado da molha do caminho, vi cruzar milhares de carros por minuto, que só consegui fotografar a preto e branco.
Para ir de metrô da Liberdade para a República é preciso mudar de linha a meio do percurso. Na Liberdade os vagões não chegavam para todos os que esperavam no cais. Fui no comboio seguinte. Mudando de linha a coisa melhorou, não sei ainda porquê. Não conheço a cidade como conheço Lisboa, não estou na minha zona de conforto. O desconhecido engole, sofregamente ainda, o conhecido. Chegado à Praça da República tratei das burocracias com o bilhete de avião. Adiar o regresso a Portugal, tentar mais umas semanas encontrar trabalho, não desistir, apesar das saudades. Voltei para casa de ônibus, e filmei. A preto e branco.
Chego à minha rua e reparo em dois jacarandás. Estamos em Novembro, mas estão em flor. Aqui é primavera e eu ainda não tinha dado por isso. Voltei a ver a cores.
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