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November 25, 2011 Angola, Diário de viagem 0 Comments

O meu trabalho de filmagens vai incidir sobretudo no Bairro da Graça, um musseque construído com a população que veio do interior do país fugindo à guerra civil. Sem saneamento básico, electricidade, água canalizada nas casas e arruamentos, o bairro da Graça foi crescendo à velocidade da urgência de quem procurava segurança, estimando-se ter hoje cerca de 100.000 habitantes, segundo estatísticas informais – porque censos é coisa que não existe. Custou-me a acreditar nos números. Para cerca de um quarto da população de Lisboa, num bairro sem grande densidade populacional, calculando um agregado familiar com média de 5 elementos, são necessárias 20.000 fogos. Pelas contas no google maps, ainda que com uns 3 anos de desactualização, o bairro tem cerca de 1500X1000 metros. Enfim… Fizemos aqui umas contas em casa mas as opiniões divergem e a conclusão é que não dá para chegar facilmente a números. Além de que não é certo que o mapa tenha só 3 anos de desactualização. Seja como for, o melhor mesmo é ir lá e percorrer todas as ruas.

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O primeiro dia de contacto foi, à semelhança dos anteriores em Benguela, dedicado a apresentações e pedidos de autorização para as filmagens. Desta vez juntou-se a intenção do documentário à apresentação das voluntárias dos Leigos para o Desenvolvimento que irão dar continuidade ao trabalho desenvolvido pela ONG no últimos 15 anos. Primeiro o Administrador do bairro, uma espécie de presidente da junta, que trabalha numa das poucas casas de tijolo e estuque existentes. Parece uma pequena repartição de finanças, um qualquer edifício burocrático, com avisos e circulares impressos em folhas A4 afixadas nas paredes. A recepção foi também burocrática, e, portanto, um pouco fria. Mas está feita. Continuámos a subir o morro. Vamos apresentar-nos ao Comandante da Polícia. Ao contrário da Admninistração, a Polícia não tem ainda instalações e trabalha numa tenda de campanha no topo norte do bairro. Com imaginação sou levado para outra latitude do continente africano. Uma vez mais, a apresentação foi uma mera formalidade, sem grande demora ou dedicação a conhecermo-nos. O calor era imenso, agravado pelas ruas poeirentas, e a paragem na Taberna “O Olhar”, um contentor de mercacdorias convertido com prateleiras, frigorífico, coca-colas, cucas e amendoins, ajudou a retemperar energia.

A apresentação mais importante e interessante foi com o Soba, um líder local que nalgumas regiões é sucedido por linhagem directa, hereditária, noutras por eleição através de um conselho de anciãos. Ninguém me soube explicar isto com completa certeza ainda, mas consta que é mais ou menos assim. Mesmo sem poderes administrativos, o Soba acaba por ter um papel de influência na população. Desrespeitar um Soba é considerado uma ofensa muito mais grave do que ofender um polícia ou ignorar o Administrador da cidade, pelo que existe uma estreita ligação de trabalho na resolução de conflitos populares entre o Soba e as autoridades oficiais.

A reverência ao Soba começa a perceber-se ao chegar à porta de casa. Pedimos para falar com o Soba e ficamos à espera que alguém o avise da nossa chegada. Alguns minutos depois, passados a correr com toda a criança que surgiu nas ruas com curiosidade pela nossa presença, apareceu o filho mais velho, o Francisco Pascoal, que fala português e serve de intérprete ao pai que apenas fala Umbundo, o principal dialeto da região. O Soba é um senhor muito velhinho, parece saído de um filme. Pequeno, de corpo frágil e movimentos cuidadosos para não se aleijar.

Primeiro protocolo: o aperto de mão. Estica-se o braço direito, de palma virada para a esquerda, o braço esquerdo cruza por baixo e a mão apoia o antebraço direito junto ao cotovelo. Falhei-o. Fui o primeiro a cumprimentá-los e só depois de ver as leigas a fazer correctamente percebi que já tinha cometido uma gafe protocolar. Segundo protocolo: sentar. Foram buscar cadeiras e a Catarina avisou-me que “quando te dão uma cadeira, mesmo que venhas só para dar um recado que demora uns segundos, tens de te sentar”. Evitar, portanto, a tentação de recusar a cadeira dizendo que é um assunto rápido. Isto pareceu-me mais normal. De qualquer forma, o assunto levaria alguns minutos e as cadeiras seriam sempre bem-vindas. Terceiro protocolo, falhado a priori porque só me avisaram depois: os homens sentam-se antes das mulheres.

A parte melhor do encontro foi a tradução de português para umbundo. Uma conversa com diversos considerandos que demorou cerca de três minutos foi resumida em 30 segundos. Na maioria das vezes acho que as pessoas gastam demasiado tempo a explicar as coisas e que os tais 30 segundos seria mais do que suficientes, mas naquele caso pareceu-me impossível a capacidade de síntese. O Soba ia complementado as informações do filho com breves acenos de cabeça acompanhados de hã hã. Ao fim dos 30 segundos de tradução, bateu palmas, o sinal de agradecimento. Fiquei completamente fascinado com a cena, com a tradução e com a imagem do Soba.

Quando nos levantámos para as despedidas, novos cumprimentos, agora já com a mão esquerda no sítio certo, tudo a correr bem. O encontro foi um sucesso, fomos bem acolhidos, bem aceites, os sorrisos reflectiam empaticamente a satisfação de todos. Mas num impulso resolvi esquecer-me uma vez mais dos protocolos. A vontade de ter o Soba e aquela relação com o filho no documentário foi tão grande que lhes pedi ali mesmo que pudessemos falar mais tarde, para gravar uma entrevista. Os sorrisos e o som da animação cessaram imediatamente. Parecia que o tempo tinha parado, naquelas fracções de segundo que duram eternidades, em que qualquer mínimo ruído chama a atenção. O Soba olha para o filho, trocam umas palavras em umbundo. Pergunta-me que conversa quero ter. “Ah… Gostava muito de ouvir o Soba falar no nascimento do bairro da Graça, da origem das pessoas, de como foram esses tempos.”, respondi. O sol era abrasador, mas por dentro senti um ligeiro arrepio. Voltaram a falar um com o outro. Olhei para a Catarina e depois para o chão. Ups. Não me lembro se o Soba voltou a bater palmas, mas a grande dúvida deles parecia ser se eu queria falar naquele momento ou mais tarde. “Ah, mais tarde, mais tarde, depois passo por cá.” O tempo voltou a andar e o silêncio reocupado com despedidas e acenos misturados com sorrisos nervosos. Voltei a olhar para a Catarina, a voluntária que está cá há mais de um ano. “Tens de ter mais calma, companheiro. Aqui tens de tratar de um assunto de cada vez.”