Cidade submersa
É a quinta vez que venho a Varanasi, mas a primeira que não é em Março ou Abril. Nesses meses, à entrada do Verão, o clima é seco e o caudal do Ganges está baixo, deixando a descoberto toda a linha de ghats que ligam a cidade ao rio através das escadarias íngremes. Mas entre Julho e Setembro chegam as monções e este ano choveu mais do que o habitual. As barragens dos vários afluentes que desaguam no Ganges foram obrigadas a fazer descargas e o nível das águas bateu máximos históricos que há décadas não eram vistos por aqui. Houve ruas alagadas e lojas inundadas. A cidade recuou. Entretanto, nas últimas duas semanas, parou de chover e o rio desce agora lentamente, cerca de um degrau por dia.
Nunca tinha visto uma cidade submersa. Ou parte importante de uma cidade, pelo menos. As rotinas de trabalho que tive em março deste ano passavam muito pelos ghats. Acordava de madrugada, descia ao rio, bebia dois chás para me dar energia, e acompanhava depois a direcção das águas, repetindo em cada noite os lugares, reencontrando pessoas, observando as diferenças próprias da impermanência das coisas. Ver o dia nascer sentado junto à água, a ouvir os cânticos religiosos do habitantes que vêm celebrar mais um dia é uma experiência regeneradora e viciante.
Mas agora, com a contingência das monções, para acompanhar o Ganges sou obrigado a percorrer as ruas da cidade e entrar em cada viela que me dê a oportunidade de chegar ao rio. Quando desço os degraus que emergem das águas castanhas de terra trazida pelas chubvas, tento refazer mentalmente as formas que conhecia e agora não me são permitidas ver. É uma sensação poética de tempo. Para mim, é um evento novo e espectacular. Para as pedras de milhares de anos me conduzem no caminho, é apenas a repetição do ciclo de vida da natureza. Uns meses ao sol, outros submersos, numa erosão normal entre a agressão do calor e o entranhamento da água que lhe vai envelhecendo o aspecto. Como as pessoas, mas muito mais devagar.
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