Cidades rebeldes
São Paulo foi palco dos maiores protestos que há memória no Brasil contra o aumento das tarifas de transportes. Os vários governos e prefeituras propuseram aumentar de R$ 3,00 para R$ 3,20 e isso fez sair às ruas centenas de milhar de pessoas. A coincidência da ocasião da Taça das Confederações de Futebol, organizada pelo Brasil como preparação para a Copa do Mundo de 2014, com as principais selecções do mundo a jogar entre si e televisionada para todo o mundo, amplificou globalmente a dimensão dos protestos e a suas causas.
A leitura mais simplista é a do aumento de 20 cêntimos de real da tarifa de metrô e ônibus. Mas um aumento que não chega a 20% do valor do bilhete, num contexto de crescimento económico (apesar dos sinais recentes de retracção) pode ter servido apenas de gota de água para a revolta da população com um imenso universo de outras insatisfações. Os temas que saíram à rua, no epicentro do fausto tecnológico, infraestrutural e de canalização de recursos estatais para os eventos desportivos, alargaram-se então à qualidade dos serviços de Saúde, Educação e poder de compra do povo brasileiro.
Na Livraria Cultura (www.livrariacultura.com.br), um lugar fantástico para encontrar alguns livros que procurei em vão em Lisboa e onde tenho acesso a internet gratuita, compensando a lacuna cibernética da casa onde estou, encontrei por 10 reais uma resenha com textos de vários autores sobre o tema. A leitura do problema extrapola obviamente o aumento das tarifas dos transportes colectivos e questiona a cidade como representação social, as forças que condicionam a desenvolvem, e o papel das pessoas nesse crescimento, com todas as decisões acertadas, erradas, criminosas ou altruístas que podemos imaginar. Naturalmente, o conflito entre interesses capitalistas e a força do trabalho, representada pela mole humana dos milhões que vivem e se deslocam na cidade, é o fulcro da questão. Os 20 cêntimos de aumento da tarifa do bilhete tornam-se numa metáfora, um mero rastilho, para representar este conflito de forças, uma guerra urbana entre a inclusão social e democratização do espaço e a estratificação da cidade por castas económicas, vedando-a com catracas (o que chamamos torqniquetes em Portugal) às classes que apenas dispõe de recursos para se deslocar, equanto força de trabalho, de casa para o emprego .
Acresce a isto que o serviço prestado pelos transportes colectivos está longe de satisfazer a maioria dos paulistanos. A linha vermelha do metrô, por exemplo, em hora de ponta, chega a obrigar os passageiros a esperar na plataforma da estação por três levas de composições até conseguir entrar, diz-me uma miúda portuguesa que conheci há dias, que trabalha num projecto de inclusão social num dos bairros mais periféricos da cidade.
Há poucos dias, lá na casa onde estou generosa e simpaticamente hospedado, surgiu uma discussão ao jantar sobre os tristes acontecimentos num show da Gal Costa organizado recentemente pela Prefeitura de São Paulo numa praça pública no centro da cidade, com entrada livre. Os transportes públicos, que ligam o centro da cidade à periferia, ficaram abertos toda a noite, sem cobrança de tarifa, para permitir trazer toda a população ao show. No meio das centenas de milhar de pessoas que assistiram ao concerto, apareceu um grupo de cerca de 70 vândalos, vindos das favelas da periferia, um chamado “arrastão”, que varreu em força o público, roubando, batendo indiscriminadamente, deixando um rasto de feridos, de lágrimas, de sangue e desespero. Os policiais nada fizeram. Há relatos que garantem tê-los visto “mais ocupados a ver as meninas passar do que a garantir a segurança das pessoas”. Corre a opinião que estes shows deviam continuar a ser organizados, mas sem a “benesse” dos transportes públicos abertos e liberados, para evitar “esse caos”. Uma solução precária e injusta, por penalizar duplamente os milhões que vivem na periferia, excluindo-os do centro, estigmatizando-os e generalizando a acção de 70 indivíduos que a Polícia Militar não conseguiu conter.
O livro que comprei na Livraria de Cultura, “Cidades Rebeldes – Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil”, tem passagens que merecem atenção. Por explicarem bem melhor o problema do que eu alguma vez conseguiria expor, deixo alguns excertos.
“Ao mesmo tempo que ultrapassava as formas de organização já estabelecidas, o teor explosivo das mobilizações apontava para as contradições que o produziam, imbrincadas no sistema de transporte colectivo, ponto nodal na estrutura social urbana. O acesso do trabalhador à riqueza do espaço urbano, que é o produto do seu próprio trabalho, está invariavelmente condicionado ao uso do transporte colectivo. As catracas do transporte são uma barreira física que discrimina, segundo o critério da concentração da renda, aqueles que podem circular pela cidade daqueles condenados à exclusão urbana. Para a maior parte da população explorada nos ônibus, o dinheiro para a condução não é suficiente para pagar mais do que as viagens entre a casa, na periferia, e o trabalho, no centro: a circulação do trabalhador é limitada, portanto, à sua condição de mercadoria, de força de trabalho.”
Movimento Passe Livre – São Paulo, Não começou em Salvador, não vai terminar em São Paulo (Cidades Rebeldes – Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, 2013), p.15
[…] A terra urbana permaneceu refém dos interesses do capital imobiliário e, para tanto, as leis foram flexibilizadas ou modificadas, diante de urbanistas perplexos. A disputa por terras entre o capital imobiliário e a força do trabalho na semiperiferia levou a fronteira da expansão urbana para ainda mais longe: os pobres foram expulsos para a periferia da periferia. […]
[…] Os despejos violentos foram retomados, mesmo contra qualquer leitura da nova legislação conquistada por um judiciário extremamente conservador. Favelas bem localizadas na malha urbana sofrem incêndios, sobre os quais pesam suspeitas alimentadas por evidências constragedoras.
Os megaeventos – como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, entre outros – acrescentam ainda mais lenha nessa fogueira. […] Os capitais se assanham na pilhagem dos fundos públicos, deixando inúmeros elefantes brancos para trás.
Mas é com a condição dos transportes que as cidades acabam cobrando a maior dose de sacrifícios por parte de seus moradores. E embora a piora de mobilidade seja geral – isto é, atinge a todos – é das camadas de rendas mais baixas que ela vai cobrar o maior preço em imobilidade.
O tempo médio das viagens em São Paulo era de 2 horas e 42 minutos em 2007. Para um terço da população, esse tempo é de mais de três horas, ou seja, uma parte da vida se passa nos transportes, seja ele um carro de luxo ou num ônibus ou trem superlotado – o que mais comum.
A desoneração dos automóveis somada à ruína do transporte colectivo fez dobrar o número de carros nas cidades. Em 2001, o número de automóveis em doze metrópoles brasileiras era de 11,5 milhões; em 2011, subiu para 20,5 milhões. Nesse mesmo período e nessas mesmas cidades, o número de motos passou de 4,5 milhões para 18,3 milhões. Os congestionamentos de tráfego em São Paulo, medida entre as 17h e 20h de Junho de 2012, foi de 7,6 km/h, ou seja, quase igual a da caminhada a pé. […]
Segundo especialistas em mobilidade urbana, há mais subsídios para a circulação de automóveis (incluindo combustível e outros items) do que para o transporte colectivo.
A prioridade ao transporte individual é complementada pelas obras de infrasestruturas dedicadas à circulação de automóveis. Verdadeiros assaltos aos cofres públicos, os investimentos em obras de viadutos, pontes e túneis, além da ampliação de avenidas, não guardam qualquer racionalidade de mobilidade urbana, mas com a expansão de mercado imobiliário, além, obviamente, do financiamento de campanhas.
O forte impacto da poluição do ar na saúde da população paulistana, com consequente diminuição da expectativa de vida, tem sido estudado pelo médico Paulo Saldiva, pesquisador da USP e do Instituto da Saúde e Sustentabilidade. O comprometimento da saúde mental (depressão, ansiedade mórbida, comportamento compulsivo) tem sido estudado pela psiquiatra Laura Helena Andrade, também pesquisadora da USP. É da vida, do tempo perdido, mas também de morte que estamos tratando.
Ermínia Maricato, É a questão urbana, estúpido! (Cidades Rebeldes – Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, 2013), p. 24-25
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