De que cor são as laranjas?
Há muitos anos, demasiados, fui com o meu pai ao Musée de l’Orangerie, em Paris, para ver os nenúfares do Monet. Já tínhamos passado por todos os outros museus, o meu pai com uma resistência física inacreditável para quem estava a poucos meses de morrer, só possível em alguém num transe de entusiasmo por ver a centímetros os traços e as texturas que só pudera ver durante sessenta e dois anos em reproduções manhosas em livros. Eu, com 18 anos, sem pedalada para tudo, mas com momentos de curiosidade genuína, a querer saber porque é que ele dizia que não se aprendia grande coisa com o Van Gogh, a dizer mal do Dubuffet e de todos os que se renderam a uma fórmula de sucesso comercial e abdicaram da evolução do seu percurso artístico, a ouvir as histórias de como o Rodin, no fim da vida, quando as artroses já lhe tinham deixado as mãos encarquilhadas e precisava de quem lhe executasse as ideias, tinha uma relação tão próxima e eficaz com o ajudante que já lhe bastava comunicar por grunhidos para o dirigir a moldagem, e que este, quando o Mestre morreu, reivindicou a autoria das esculturas, “Mas nunca mais fez nada, depois de o Rodin morrer. Não basta ter mãos. Faltavam as ideias e os grunhidos”. E estávamos ali de pé a ver o nenúfares, uns frescos gigantes que ocupam a parede de uma sala, quando me ocorreu:
– Porque é que ele pinta assim?
– Porque vê as coisas assim.
– Vê assim, como? Assim, como as pinta? Não é possível.
– É.
O meu pai tinha uma forma pouco didática de me passar conhecimento. Quando eu lhe perguntava o que distinguia um bom quadro de um mau quadro, dizia-me para ver mais pintura, horas, dias, meses, anos, e que depois não ia precisar de perguntar isso. Levei muito tempo a perceber o que ele queria dizer com “ver as coisas assim”.
Existe, entre os fotógrafos, um velho debate sobre o que leva uns e outros a ir pelas a cores ou a preto e branco. Uns dizem que preferem a crueza do monocromatisco, defendam a simplicidade que confere na composição da imagem, outros argumentam que a cor é essencial para as emoções, seja lá o que isso for. Muito falam disto como uma escolha, uma opção. É frequente ver alguns leigos dizerem que “gostam de fotografia a preto e branco”, ou que fotografar a preto e branco é “pseudo-intelectual”, expressão que é usada na esmagadora maioria por pessoas que não fazem ideia do que é um intelectual.
Quando comecei a levar a sério o meu projecto de Varanasi, em Março de 2015, sabia que queria fotografar a preto e branco. As minhas influências estéticas, o Gianfranco Rosi, o Michael Ackerman, tinham abordado Varanasi a preto e branco. Grande parte das minhas afinidades visuais eram a preto e branco. Mas ao chegar à Índia, ao levar com a chapada de cor que todos os prédios têm, todas as roupas, as bancas dos mercados, qualquer fotografia que fizesse a preto e branco me parecia pretensiosa e falsa, ao contrário das fotografias a cores, que me resgatavam as sensações que tivera nos lugares. Percebi que não estava a ver a preto e branco e que por mais que me esforçasse, não deixava de ver a cores.
O acumular de uma semana de jet lag, com noites de duas horas de sono e dias inteiros a percorrer a pé a cidade, a par de um envenenamento provocado por um feiticeiro local – não há provas científicas deste facto, mas continuo ter esta hipótese como a mais provável – atiraram-me enfermo e em agonia durante dois dias para a cama do quarto da guest house onde estava. Dormi 17 horas de seguida, apenas interrompidos para me arrastar para a casa de banho, e depois recuperei lentamente com chá com açúcar, torradas secas e água de arroz.
No meio do torpor, lembro-me de olhar longamente para a ventoinha do quarto, recordando-me o Apocalypse Now. Olhei-a como se a fotografasse. E, de repente, vi-a a preto e branco. Senti-a a preto e branco, dura, cruel, sintetizada. Fiz o esforço para ir buscar a máquina e confirmei o que via. O meu cérebro estava a interpretar a realidade em tons de cinzento, antes de se aperceber que a realidade era a cores.
Quando voltei à cidade, um ano depois, e mudei toda a minha abordagem ao tema, não deixei de continuar a ver a preto e branco. É costume ter reacções de quem mostro a maquete do livro como “eu gostava de ver isto a cores”, ou “como é que consegues fotografar a preto e branco na Índia?”. Consigo, porque a vejo assim e é assim que me lembro dela quando estou em Lisboa. Estas fotografias transportam-me sensorialmente para aquele lugar, ao passo que as fotografias a cores que vejo, se fizer uma pesquisa na net, parecem-me tão objectivas no seu detalhe e cromatismo que nunca me deixam de fazer sentir estar apenas a ver uma imagem e não um vórtice espacio-temporal, como acho que a fotografia deve ser: um passaporte com visto gold para o mundo psicanalítico do fotógrafo que viveu o antes, o durante e o depois do momento em que carregou no botão, como uma memória emprestada, um acto de voyeurismo sensorial e psicológico.
Fotografar a preto e branco ou a cores não deve uma opção, mas uma inevitabilidade, uma representação do que quem fotografa vê. Esse caminho não é fácil, mas acredito que seja o mais sincero e que mereça resultados mais verdadeiros.
Mas os meus últimos dias aqui, desde que regressei a Varanasi em Setembro, têm sido por vezes problemáticos. O céu coberto de nuvens atenua os contrastes que a luz directa do sol trazia à cidade que conheço. Com a chuva, o pó que amarelecia e acinzentava tudo, que preenchia o ar e me atacava os pulmões e os olhos, está agora em lama, no chão, e o ar é cristalino, dando aos tons pastel dos prédios e das roupas das pessoas um brilho e uma intensidade difícil de resistir. Fotografo a preto e branco, porque não faz sentido voltar ao ponto zero de um projecto que já me consumiu muitas horas e dinheiro, mas custa-me que o meu cérebro tenha mais dificuldade em “ver” – e sentir – a preto e branco.
Com o passar dos dias, e sobretudo quando regresso aos temas que abordei em Março, é mais fácil voltar a “ver”, mas há uma rua, a das fotografias que vos mostro, onde me é impossível não fotografar a cores.
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