dias compridos
Fico sempre cheio de dilemas, dúvidas e angústias quando filmo. Tenho medo de não estar a pensar bem, de estar a perder aspectos essenciais, de não estar a conseguir ‘entrar’ no objecto, de tomar decisões erradas, de ir por caminhos menos interessantes quando o do lado é que era excepcional. Dúvidas quanto ao dispositivo, quanto à abordagem às pessoas, quanto aos assuntos, ao guião e à narrativa. Estas dúvidas causam-me angústias recorrentes que são compensadas com uma manhã que corre particularmente bem, ou com alguma cena que me venha por sorte parar às mãos.
Tenho já várias horas de material filmado, coisas que acho que estão muito boas mas que precisam de montagem para ganhar linha, outras que me permitiram entrar num determinado local e ganhar confiança com a micro-comunidade ali existente. Por exemplo, um pátio onde coexistem umas 4 casas e uma taberna, com toda a população possível de ali se relacionar. Mulheres que cozinham o almoço num fogareiro junto à porta, mexendo com um pau a fuba que coze na panela, crianças que interrompem as brincadeiras e ficam aos saltinhos com olhar curioso fixado na lente da minha câmara, homens ébrios já às sete da manhã com quissangua fermentada que bebem em latas de salsichas reconvertidas, uma mãe adolescente com 17 anos que serve nessa taberna enquanto amamenta o bebé de um ano, duas prostitutas com ar cansado, também ébrias, que tentam em vão recuperar alguma sensualidade extinta, jovens adolescentes desempregados que sonham com outra vida em Luanda, mas que vão ficando pelos poucos biscates que ainda aparecem em Benguela, e os vizinhos que por lá passam, metem conversa ou se limitam a dar e receber os bons dias. Fiquei lá duas horas a filmar e até consegui boas imagens, mas o que me deixa mais contente é sentir que tenho espaço para aprofundar a relação, conseguir novos enredos naquela complexa peça de teatro que tinha a sensação de estar a assistir. Só espero ter também o tempo necessário para isso.
Parte da manhã é feita a repetir os percursos da véspera, criando rotinas, tornando-me rotina na vida das pessoas, que interrompem os afazeres para perguntar como está a correr o filme e quando o podem ver. Lá para Março ou Abril, respondo. Isto dá muito trabalho. Primeiro filmo muitas horas e muitas coisas e depois espalho-as todas numa mesa para escolher as que fazem mais sentido juntas. Vou falando com pessoas na rua e explicando o que pretendo. Um filme que mostre o dia-a-dia das pessoas, como elas fazem quando eu não ali estou. Às vezes filmo mesmo sabendo que não vou aproveitar para o resultado final. Não quero ter a minha voz no filme, gostava imenso de não ter entrevistas no documentário, apesar de às vezes ser virtualmente impossível mostrar uma realidade sem pôr as pessoas a falar dela. Aproveitei gostar do quadro de uma mamã que estava a lavar roupa para meter conversa e filmar um bocadinho. Foram elas que quiseram falar da alfabetização, provavelmente porque sabem donde venho.
De tarde passei por mais uma aula de alfabetização. Estava muito desfalcada, quase só com crianças, porque faleceu na véspera uma senhora do bairro. Deixei-me ficar um bocadinho, mas acabei por sair. Já tenho muitas horas de aulas de alfabetização filmadas e preferi continuar a conhecer o bairro. Por coincidência cruzei-me com o funeral. Iam várias camionetes de caixa aberta cheias de pessoas em pé, centenas em cada, acho, todas a cantar. Pedi boleia à última que passou. O cortejo saía do bairro da Graça para o cemitério, a uns dois quilómetros. Ana Ndegues, 43 anos, vítima de tuberculose. Deixou filhos que já tinham também perdido o pai. Estavam inconsoláveis. Assusta-me a perda definitiva. O vazio e o silêncio que se instalam, os percursos, conversas e convívios nunca mais repetidos. Assusta-me a sensação de finitude, de tempo que passa implacavelmente, sem apelo, como um rolo compressor que alisa em velocidade constante o macadam num estrada em construção.
Mas ainda faltava muito para o dia acabar. Uma conversa marcada para o final do dia com o Eduardo, um morador do bairro, vizinho de vários irmãos com quem veio com os pais do interior da província em busca de refúgio da guerra, à procura de um futuro melhor. A conversa arrastou-se para dentro de casa dele. Bebes uma gasosa, não bebes? Bebo, sim. Tirou uma Cuca para ele, uma Coca-Cola para mim. Bolas! Aquela gracinha do “irmão” Tiago, na apresentação na missa de Domingo, já me está a dar fama de menino de coro. Não tens mais nada, Eduardo? É que se bebo isso a esta hora já não durmo. Não, só se for Cuca. Pois que lá terei de me sacrificar, irmão… Brindemos com Cuca.
Quando saí de casa do Eduardo já não havia táxis em circulação para a cidade. Tive sorte de apanhar a boleia de um que não estando já a recolher clientes, ia ser entregue ao ‘patrão’, à entrada da cidade. Queres boleia? Depois apanhas uma mota. Já te tinha visto por aí com a câmara. O que andas a fotografar? Não é fotografia, é filme. E contei-lhe o meu dia.
1 Comment