elevação transiente das transaminases
Respeitar a profilaxia contra a malária, com todos os efeitos secundários inerentes podem resultar em duas de várias coisas: alucinações ou ideias para filmes. Uma noite de insónias e alucinações deu-me tempo para escrever uma ideia para um filme.
Começa com a imagem de cima, com som subaquático, sem frequências médias. Uma voz limpa, esfíngica, pode ser a Julianne Moore – eu deixo – lê a introdução:
A malária é uma doença infecciosa que está espalhada pelas áreas tropicais e sub-tropicais de África.
Existem várias formas de malária, de acordo com os diferentes patogéneos. O tipo mais perigoso é a malária tropical.
Em todas as formas de malária, a infecção resulta da picada do mosquito Anopheles.
A imagem inicial desaparece e estamos agora num pântano infecto. A tonalidade é cinzenta escura, com algum vapor a percorrer o plano horizontalmente. Grande plano de um mosquito a planar sobre as águas.
Cerca de uma semana depois da picada do mosquito podem ocorrer febre, tremores, dor de cabeça, dores musculares nos braços e pernas e, por vezes, diarreia e vómitos. Estes sintomas podem ser facilmente confundidos com gripe. No entanto, se a infecção for causada pelo Falciparum malariae (o mais perigoso dos parasitas que causa malária) e o tratamento não for iniciado de imediato, a infecção pode rapidamente provocar danos graves em vários orgãos, perda de consciência e morte.
O som das asas do mosquito torna-se audível. Subitamente, o mosquito pousa com as seis patas na água, aproveitando a tensão superficial para não se afundar. O som desaparece, restando apenas o murmúrio surdo do pântano. O mosquito perfura a água com a antena, bebendo-a.
Fade out do plano para negro.
Fade in para uma alva unidade fabril da indústria farmacêutica. Uma pavilhão hermeticamente fechado, sem luz natural, todo branco, com luz fluorescente intensa.
Simultaneamente, ouve-se outra voz. Diferente. Grave, escura. Já contratei o James Earl Jones.
Efeitos secundários
Poucos funcionários vestidos de branco, com máscara verde na cara. Muitas máquinas completamente automatizadas.
Perturbações do foro psiquiátrico
Muito frequentes: ansiedade, depressão, alucinações.
Frequentes: agitação, agressões, alterações de humor, ataques de pânico, esquecimentos, confusão.
Grande plano de um enorme caldeirão de inox onde um pó branco é homogeneizado com duas roscas iguais às batedeiras para fazer bolos, mas gigantes.
Doenças do sistema nervoso
Muito frequentes: tonturas ou vertigens, dor de cabeça, insónia, sensação de formigueiro ou dormência na pele (parastesia).
Frequente: perda de equilíbrio, sonolência, alterações do sono, sonhos anormais, alterações sensoriais e motores do sistema nervoso (neuropatia), tremor, alterações da coordenação (ataxia), convulsões, reacções psicóticas ou paranóicas e ideação suicida.
Pouco frequentes: alterações cerebrais (encefalopatia).
No mesmo plano, câmara descola-se para uma misturadora na continuidade da linha de montagem, onde o pó branco dá lugar a uma pasta bege por acrescento de um líquido solidificante.
Afecções oculares
Frequentes: distúrbios visuais.
A câmara desce verticalmente até um extenso molde com círculos com menos de um centímetros de diâmetro cavados lado a lado.
Afecções do ouvido e do labirinto
Frequentes: zumbidos no ouvido (tinitus)
Pouco frequentes: perda de audição, distúrbios do equilíbrio
Um braço mecânico com uma ponta em bisnaga vai deixando montinhos de pasta em cada cova.
Cardiopatias
Muito frequentes: ritmo cardíaco anormal (palpitações)
Frequentes: pressão arterial elevada (hipertensão), vermelhidão da pele, desmaios, dor de peito, aumento do ritmo cardíaco (taquicardia), ritmo cardíaco anormalmente baixo (bradicardia).
Pouco frequentes: alterações circulatórias, pressão arterial baixa (hipotensão), batimento cardíaco irregular, extrasístoles e outras alterações da condução transitórias, alterações do ritmo cardíaco (bloqueio AV).
Outro molde semelhante, mas virado ao contrário, junta-se ao primeiro, prensando os montinhos de pasta.
Doenças respiratórias, torácicas e do mediastino
Frequentes: falta de ar (dispneia).
Muito raros: doença pulmonar (pneumonia) de possivel etiologia alérgica.
Os moldes mantém-se juntos durante um minuto, seguindo num tapete enquanto outros moldes vão sendo cheios com mais montinhos de pasta bege.
Doenças gastrointestinais
Muito frequentes: náusea, vómitos, fezes moles, diarreia.
Frequentes: dor abdominal, indigestão (dispepsia), perda de apetite.
A câmara acompanha os moldes voltarem a separar-se.
Afecções dos tecidos cutâneos e subcutâneos
Frequentes: erupções cutâneas, exantema, urticária, comichão (prurido), queda de cabelo, vermelhidão da pele (eritema multiforme).
Pouco frequentes: eritema, retenção de água nos tecidos (edema), doença grave causando a morte das células da pele (conhecida como Síndrome de Stevens-Johnson).
Outro braço mecânico pisa um por um os ex-montinhos de pasta, agora sólidos e geometricamente regulares.
Perturbações gerais e alterações no local de administração
Muito frequentes: fadiga.
Frequentes: elevação transiente das transaminases, astenia, mal-estar, febre, sudação, arrepios.
A câmara alinha com o extenso tapete de comprimidos, uns já pisados, outro por pisar, às centenas, aos milhares, às centenas de milhar.
Afecções musculosqueléticas e dos tecidos conjuntivos
Frequentes: fraqueza muscular e cãibras, dor muscular (mialgia), dor nas articulações (artralgia).
No extremo do braço está um carimbo de alto relevo. A câmara aproxima em close-up extremo e revela: mephaquin.
O resto do filme ainda não pensei. Estou um bocadinho bloqueado com os efeitos secundários da medicação que tenho tomado para a malária. Tonturas, dores de cabeça, zumbidos nos ouvidos, insónias, sonolência, ansiedade, agitação, alterações de humor, esquecimentos, confusão. E, claro, depois de ler a bula – vou ter de pagar direitos para a usar no filme – constatei que também tenho sentido amiúde elevação transiente das transaminases.
Todas as pessoas que para cá vieram dizem-me para deixar de tomar os comprimidos, que os efeitos secundários são piores do que a malária. Nenhum deles os toma, poucos os tomaram sequer até meio da prescrição. Dizem-me que importante é ir protegendo com repelente de insectos e dormir num mosquiteiro – vende-se na rua. Dizem que até os médicos que vivem em Angola desaconselham a toma dos comprimidos.
Tudo isto, o contraste entre o discurso dos médicos na europa e a prática dos de cá, a diferença entre os pânicos europeus e a descontração de quem aqui vive, lembram-me a loucura que foi a gripe A.
Lembra-me também o Contagion, do Steven Soderbergh. Nothing spreads like fear.
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