Minhocão

October 30, 2013 Brasil, Diário de viagem 2 Comments

‘Minhocão’. Um viaduto rodoviário com mais de três quilómetros de extensão, suspenso sobre as já movimentadas ruas e avenidas do centro de São Paulo. Obra típica de um regime ditatorial, decidido por poucos com prejuízo de muitos. Os cinco metros de altura deste verme urbano de proporções bíblicas transformaram em cave, no início dos anos 1970, as lojas e o 1º piso dos edifícios que já ali estavam, alguns à distância de pouco mais de um braço do tabuleiro onde todos os dias, excepto ao domingo, se cruzam centenas de milhar de automóveis.

Na cidade que se tornou recentemente o epicentro mundial da discussão da mobilidade urbana, o ‘Minhocão’ surge como um monumento maldito desta filosofia que contraria os ideais que nos levaram, ao longo de séculos, a vivermos em cidade para conseguirmos conciliar mais facilmente vida, família, trabalho e riqueza. O debate trouxe para a ordem do dia a urgência de se optar por um transporte público eficiente, abrangente e gratuito, em detrimento das políticas continuadas de incentivo à compra de automóvel particular. Em causa está também a injustiça social, desperdício de energia e potencial humano das horas perdidas em deslocações entre casa e o emprego por milhões de pessoas.

O ‘Minhocão’ é uma obra típica de um regime ditatorial, dizia. O nome de registo é Elevado Presidente Costa e Silva, presidente do Brasil durante a ditadura fascista que prendeu, torturou e matou milhares de pessoas. Mas a ironia é terrível. Muitas ditaduras não são de direita nem de esquerda e vivem muitas vezes em plena democracia. As cidades que crescem com ordens impostas de cima para baixo, gritadas por governos surdos e acatadas por pessoas sem voz, continuam a fazer parte da nossa contemporaneidade.

Vi neste ‘Minhocão’, fechado ao trânsito aos domingos, uma bela metáfora para a negação do que deve ser a vida urbana. Vi uma cidade fantasma, abandonada, uma obra obsoleta, inóspita, num ambiente de decadência e morte, de finitude, que apenas observara em obras de ficção científica, imagens futuristas e catastróficas de capitulação da humanidade. Consegui sentir, nesses delírios de um tempo futuro que não desejamos, fantasmas de outras vidas, memórias de ocupações e usos, uma carcaça morta, sem sentido nem utilidade. Desumana, fria, assassina. E morta. E aí entra a Billa e o Igor, a contrastar. O amor infinito que une mãe e filho, o milagre da vida, da alimentação gerada em nós, a esperança no ser humano, vencendo o cenário desolador.

É urgente debater como as cidades deviam ser. É urgente debater a relação justa que devia ter o Estado com o cidadão. Algo de estranho se passa quando somos tão rápidos a reduzir como baderna (ver significado aqui) as manifestações dos últimos meses, e mesmo a actuação dos Black Bloc, ignorando as motivações políticas, como a aceitar passivamente que se espezinhe as pessoas construindo uma auto-estrada a cinco metros da janela das suas casas, deteriorando para sempre as suas vidas, a sua saúde física e mental.

Nem só de pão vive um homem, nem só de leite viverá uma criança. Se não soubermos alimentá-las com pensamento crítico, nunca poderemos melhorar este mundo absurdo. Espero que o Igor seja, quando crescer, um cidadão inconformado e participante numa democracia que todos os dias precisa de ser reforçada com ideias e debate.

Texto publicado também no meu outro projecto parceria com a Catarina Beato, o Loove.