potencial máximo

December 17, 2011 Angola, Diário de viagem 0 Comments

Mais um dia a acabar, igual na estrutura a tantos outros, com várias horas de filmagens passadas em bairros diferentes. É um jogo de sorte, muitas vezes. Há dias em que tudo o que encontro é interessante, outros em que tudo me parece banal. Há dias em que me sinto com uma energia estranha, numa concentração obsessiva pela imagem, a encontrar facilmente boas fotografias, equilíbrios de formas e cores, bom controlo da focagem, sensibilidade para a profundidade de campo, o corpo organicamente casado com a câmara. Nesses dias, quando tudo isto acontece em simultâneo, repito várias vezes em off, que plano do caraças, pá, vai ficar no filme. Mas depois há a compensação negativa, o preço a pagar para ter essa energia, em que o corpo não aguenta sequer o próprio peso, nem os olhos encontram nas coisas o ângulo que as faça valer a pena filmar.

Como os dias têm sido longos para serem bem aproveitados, é frequente ter os dois tipos de experiência várias vezes em menos de 24 horas. Anteontem a manhã correu muito bem, numa marcenaria onde jovens entre os 12 aos 20 e poucos anos aprendem o ofício com o Mestre Adriano, alguns deles em part-time com a escola, mas a tarde, na festa de entrega dos diplomas da alfabetização, foi a compensação negativa. Os volte-face chegam quando menos se espera. No final, depois do bolo distribuído e do champagne aberto, com a sensação terrível de desinspiração quando já estava a desmontar todo o material, a câmara, o microfone, o pré-amplificador, os vários cabos, e de mochila aberta a arrumar tudo nas bolsas para ir para casa, chegou o Paiza para me cumprimentar.

O Paiza é um jovem de voz suave que vive no Calumburaco (acho que é assim que se escreve, mas existem imensos nomes por aqui que desconheço a real grafia porque nem sempre percebo como se pronunciam), numa casa com um quarto e uma sala juntamente com a mãe, uma irmã e três irmãos. Estuda medicina e quer arranjar um trabalho que dê algum rendimento para ajudar a pagar as propinas. Não consegui vislumbrar nem no discurso, no olhar ou no sorriso qualquer ponta de maldade. Há pessoas assim, conheço umas três ou quarto, talvez nem tantas, que parece nunca terem sentido qualquer perfídia em vida. O Paiza pareceu-me assim, mas ainda o vou conhecer melhor no pouco tempo que me resta para filmar. Ele não mora na Graça mas ensaia ali um grupo de dança num anexo de uma tasca que à noite se transforma em discoteca, em frente ao campo de futebol, onde costumo parar ao fim da tarde para beber uma Cuca. Diz que tem fumo a sair do chão e tudo, nessas noites disco, mas ainda não lá fui confirmar. Contou-me um morador do bairro que em tempos houve aparições de fantasmas por lá, que um jovem chegou a dançar com uma rapariga já falecida, mas que era makumba feita contra o antigo dono do estabelecimento. Diz-se que enriqueceu depressa e ficou vaidoso a ponto de ter achado que viver na Graça já não tinha a dignidade que a sua conta bancária merecia. Uma história confusa, reconheço, mas estava barulho na tasca, quando me contaram, e à Cuca que eu pedira para fechar o dia já se tinham juntado algumas outras que perdi a conta, oferecidas em rodadas por vizinhos que se iam juntando à mesa. O Paiza fala baixinho e conta histórias tristes de coisas que aconteceram à mãe como se as tivesse perdoado antes delas terem acontecido.

Acabei a entrevista a combinar esses futuros encontros. Até começámos bem, mas o meu dia já ia realmente longo e de repente fiquei sem energia para conseguir continuar uma conversa interessante. Mostras-me o teu bairro, Paiza? Podes ir lá comigo e fazes-me uma visita guiada enquanto filmo? O sol já se escondia atrás da colina e o Centro Juvenil estava vazio, só com os preparativos para a festa do 3º aniversário. A Josefa, uma miúda de 22 anos que tem um part-time na biblioteca, perguntou-me se eu vinha. Festa? Nem sabia que havia, mas sim, claro, fico por cá, então. Vou só dar uma volta para descansar e já apareço mais tarde para a cachupa.

As crianças do bairro vêem-me já na rua, de mochila e tripé na mão. Aproximam-se enquanto dizem Amigo, me tira foto, me tira foto! As primeiras vezes, nos primeiros dias, até agradecia porque era eu que andava atrás de fotografias. Um mês depois, no final de mais um dia a andar a pé de um lado para o outro, a carregar quase 10kg de material, queimado pelo sol, entranhado de pó e terra, confesso pouca vontade. Mitiráfóto, ámigô! Ó queridos, já tenho a máquina guardada na mochila. Vão brincar, tá? São quase vinte, ao longe mais se aproximam. Me tira foto, me tira foto! Gostava de um dia conseguir filmar a cena sem eles desatarem aos guinchos à frente da câmara. Derreto, aos poucos. Está beeeeeem… Pouso o tripé e tiro a mochila das costas. Alguns deles começam a cantar kuduro para o tripé, confundindo-o com um microfone. Explico para que serve aquilo. Tiro a câmara e aponto. Estão tão próximos que nem com a 17mm os consigo fotografar a todos. Imponho regras. Só tiro se se afastarem um passo. Nada feito. Recuo eu um passo. Nada feito à mesma, avançam eles dois. Volto a explicar, uso outras palavras, mostro onde quero que eles fiquem. Recuo para tirar a fotografia, mas eles parecem jogadores de futebol alinhados na barreira antes de um livre directo, mal o árbitro vira costas. Enuncio o jogo da estátua. O que é uma estátua? Explico e faço-me de estátua uns segundos. Agora vocês, aí onde estavam. Um, dois, três!

Quando cheguei a casa vi as fotografias. Olho para a série, mergulho nos olhares, estudo os sorrisos. Lembro-me das imagens de postais de ajuda solidária para o terceiro mundo. Dê o seu contributo, esta criança precisa de si. Não sei se é assim, mas podia ser. Olho outra vez para os rostos, os olhares, os sorrisos, as outras expressões. E lembro-me deles a correr por ali pelo largo, descalços, com uma resistência incrível, uns a fazer acrobacias que eu nunca consegui fazer, por medo de me aleijar e por falta de jeito, outros a saltar para dentro dos contentores de lixo a ver o lá existe, outros ainda, basta terem vontade, a acocorar-se e a fazer ali mesmo por cima de restos já secos feitos dias antes. Volto a olhar a série. Há rostos incríveis. Aquela miúda, que pedi para fotografar sozinha mas nunca consegui porque os outros já não quiseram ouvir falar outra vez do jogo da estátua. Temos todos o potencial máximo à nascença, que depois vamos desperdiçando ao longo da vida, como quem deixa escapar gás de uma botija. Uns mais depressa, outros mais devagar, conforme os estímulos e condições que tivermos. Gostava de saber quem são hoje as crianças que deram cara aos postais das campanhas de solidariedade. Gostava de saber quem vão ser estes miúdos daqui a 30 anos.