Regresso a Varanasi – Dia 1

February 2, 2017 blog, India 0 Comments

Lisboa, 3h15 – O despertador toca. Duas horas de sono.

Lisboa, 5h30 – Com meia hora de atraso, o voo de escala levanta para Frankfurt. Ponho tampões de ruído e os auscultadores desligados nos ouvidos para abafar ainda mais os motores do avião. Tento dormir. Passo pelas brasas, não mais do que isso. Antes de aterrar são feitos avisos a quem tem voos de ligação para que se apresse mal chegue ao aeroporto porque estamos com a tal meia hora de atraso. Não é o meu caso.

Frankfurt, 9h45 (hora local) – O aeroporto é gigantesco, cada terminal parece maior do que todo o aeroporto de Lisboa e há uns cinco terminais, ligados por um comboio de monocarril futurístico, sem condutor. Bem vindo ao primeiríssimo-mundo. Passo novamente a mochila de mão pelo raio-X e apresento o passaporte na alfândega. Tudo normal, sem as desconfianças de outrora, logo após o 11 de Setembro, que me faziam sempre ser seleccionado aleatoriamente com base no meu perfil árabe para ser revistado minuciosamente e ver as câmaras e objectivas sujeitas a testes de explosivos. Dirijo-me ao cais de embarque onde terei de esperar quatro horas. Está já cheio, com poucos lugares para me sentar. Procuro sossego noutros lados, caminho centenas de metros até chegar a uma sala de embarque vazia. Há vários copos de plástico espalhados no chão, saquetas rasgadas com imagens apelativas de cajus e amendoins. As televisões debitam notícias internacionais. Estou demasiado cansado para conseguir dar atenção. Deito-me numa fila de cadeiras, prendo a mochila à perna e fecho os olhos. O som das televisões enevoa-se lentamente, tento não pensar, não reter nenhum pensamento. Quero dormir, preciso de dormir. Alguém faz a limpeza da sala, oiço a vassoura pentear o chão, a pá a tilintar no caixote. Pouco depois chega um segurança. Sir? Do you have a flight to Telaviv? Sento-me rapidamente e digo que não, que vou para Delhi. Ele diz que Delhi não é ali, que ali á para Telaviv e que eu tenho de me ir embora da sala. Continua vazia, mas o segurança levanta o braço direito e estica o indicador na direcção da porta. Please, go away. Não sei se é o melhor inglês que aprendeu, mas soa-me tão humano como a modernidade do monocarril que me transportou para o Terminal C.

Frankfurt, 13h25 – O Airbus A380 levanta para Delhi, uma viagem de cerca de oito horas. Volto a tapar os ouvidos e desta vez, quando olho para o lado, a senhora indiana explica-me por gestos algo que o meu estremunhamento (não sei se a palavra existe, mas é próprio dos estremunhados) não consegue entender à primeira. Aponta para o tabuleiro em frente. Continuo na mesma. Digo que sim, que percebi. Uns segundos depois exclamo Ahhh! e ela diz “tentei acordar-te, toquei-te no ombro várias vezes, mas estavas a dormir ferrado”. Tudo isto por gestos. Veio o meu almoço. Vi dois filmes e meio, comecei outros tantos, e o avião aterrou.

Delhi, 1h30 (hora local, 20h em Lisboa) – Preencho o formulário de entrada que terei de apresentar no controlo de passaportes e vistos e que ninguém irá ler. Enquanto espero a mochila na recolha de bagagens, oiço o Benfica sofrer o primeiro golo em Setúbal. Ainda dão a volta, falta muito tempo. A mochila chega, apanho um táxi para o hotel, faço check-in, peço a palavra-passe da internet para ouvir a segunda parte do Benfica que não consegue dar a volta ao resultado e perde um a zero.

Delhi, 3h30 – Está muito frio na Índia. Não vim preparado para isso. O quarto cheira a pó e começo a tossir. Ponho o despertador para as 7h30 para tentar o voo das 8h50 para Varanasi. Durmo vestido. Não me lembro de alguma vez o ter feito. Tenho muita dificuldade para adormecer. A ineficácia atacante do Benfica preocupa-me.

Delhi, 7h35 – O voo das 8h50 está cheio, só há lugar no das 13h05. Mais de cinco horas de espera.

Delhi, 13h45 – O voo para Varanasi levanta voo, finalmente.

Varanasi, 15h20 – O Manoj espera-me nas chegadas. Traz um colar de flores que me põe ao pescoço. É pesado e frio. Abraçamo-nos. Pergunto-lhe o que significa o colar. Os nossos convidados são como Deuses, para nós. Ofereço-te este colar como o ofereceria a um Deus. Não quero ser rude ou mal educado, o que faço ao colar, depois? Dás a uma vaca, para que o coma. O Manoj é um fixer, trata de coisas a fotógrafos que vêm a Varasi. Nunca trabalhámos juntos, conhecemo-nos por acaso no último dia que aqui estive, em Setembro. Levou-me ao aeroporto. Agora veio buscar-me. Pelo caminho fala-me de locais bonitos para fotografar, lugares onde leva outros fotógrafos. Pergunto-lhe pela madeira que chega em barcaças carregadas a Manikarnika, o ghat das cremações. Sabes onde é cortada e se é possível virmos num desses barcos? Diz que sim, claro. O trânsito de Varanasi começa a adensar-se à entrada da cidade. De cada vez que cá venho fico com a sensação que está pior. O Manoj deixa-me numa das portas da cidade velha, onde já não pode entrar de tuktuk. Está com pressa para ir buscar dois irmãos americanos que tem acompanhado. Passaram a noite no hospital com uma intoxicação alimentar. Antes disso, ligou para uma guest house onde diz que vou pagar menos e ficar mais satisfeito. Mais tarde percebo que nem uma coisa nem outra, mas sempre mudo de ares e crio novas rotinas.

Varanasi, 18h30 – Vim jantar ao Denns, o restaurante do Dennis, um meu amigo indiano, deprimido há três anos, desde que a namorada coreana se foi embora. O Dennis tem sido uma espécie de refúgio para mim, sempre que me estatelo nas diferenças culturais da Índia. O negócio vai mal, mas isso não é novidade. Não admira, porque quando ele compra alimentos não aparecem clientes, e quando aparecem clientes ele não comprou mantimentos. A vida corre-lhe mal, mas ele vai vivendo por cá. Nascer num país pobre com uma divisa fraca é fodido. Por mais que ele queira viajar e sair do país, não vai ser fácil.