Regresso a Varanasi – dia 2
Ontem avisei o pessoal da recepção da guest house onde me alojei que queria sair de noite para fotografar. “No problem, you can come until 10:30 PM.” Insisti que a ideia não era essa, que ia aproveitar o jet lag para passar a noite na rua. Que ia dormir qualquer coisa antes, mas quando acordasse de madrugada queria sair da guest house. “You want check-out?” Não, pá! É só para ir para a rua fotografar, depois volto de manhã.
As guest houses costumam ter horário de recolher. Fecham a porta à chave e é preciso tocar à campainha para entrar se nos atrasarmos. Para sair, é necessário ter a chave para abrir a porta. Isso implica acordar quem estiver na recepção, o que me constrange demasiado. Sei bem o que me custa ter o sono perturbado e não gosto de perturbar o sono dos outros. Negoceio a possibilidade de saber onde está a chave, abrir a porta, voltar a fechá-la e colocá-la algures ao acesso da recepção. Nada feito. Dizem-me que Varanasi é muito perigosa à noite, cheia de bêbados e drogados que atacam as pessoas. Franzo as sobrancelhas. Nunca vi nada disso. Insistem que sim, que é perigoso eu sair a essa hora. Até às dez e meia é seguro, depois disso já não. Tudo bem, obrigado pela preocupação, mas não é preciso. Vou à mesma. Como faço? Terei mesmo de acordar quem estiver na recepção.
Conheço Varanasi a todas as horas do dia e gosto bastante mais da noite. Há um silêncio e uma calma de outro tempo. A cidade vazia faz-me sentir mais próximo dos deuses, como se estivesse a ter o privilégio de passear numa grande casa abandonada. Os espaços outrora disputados com agressividade – os condutores de motorizada sentem-se no direito sobre todas as pessoas e animais, buzinando ferozmente a meio metro de distância de alguém que caminha ou mesmo atropelando cães que estejam deitados – são agora um palco escuro e silencioso onde durante horas posso ser o único actor.
Mas não é a solidão que procuro, apesar de aproveitar essa possibilidade para caminhar pelos ghats e sentir novamente essa vibração contemplativa. Interessam-me as pessoas que partilham a noite. A relação que se estabelece é diferente da do dia. Ninguém me vê como o turista típico, há mais espaço e tempo para conversar, há um ritmo mais lento. Em cada regresso a Varanasi fotografo menos, cada vez mais sei o que não me interessa fotografar. Percorro a cidade junto ao rio como quem sobrevoa invisível uma outra dimensão. Muitas vezes fotografo sem dizer uma palavra, aproximo-me, sento-me, observo. Observo longamente. E finalmente começo a fotografar, sem pedir permissão formal. Esse consentimento tácito está feito ao longo de minutos sem trocarmos palavra. É muito raro alguém me pedir para parar de fotografar.
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Passei por Manikarnika à procura do Asutosh o homem-santo que abdicou de tudo o que tinha, depois de se licenciar em Sociologia e fazer três anos de Direito para continuar os negócios da família. Costumo encontrá-lo a beber chá, de madrugada, e ficamos ali horas a conversar. Não estava, nem ele nem o rapaz que faz o chá e partilha a loja dos pais com os outros quatro irmãos ao longo das 24 horas do dia. Junto ao crematório, os cães ladravam como costume. Era um misto de luta territorial com o efeito das piras funerárias que ardiam.
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Segui pelos ghats e acabei a tomar o pequeno-almoço quando o sol nasceu por trás da chuva miudinha que caía de manhã. Depois, fui dormir.
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