viagem para benguela
Fim da primeira etapa, dar um workshop de cinema em Luanda, e início da segunda, filmar um documentário em Benguela.
Optei por fazer os 535 Km de autocarro porque preferia conhecer o percurso por terra. De avião seria mais rápido, mas com limite de 20kg de bagagem, que seria largamente excedido se pesassem as mochilas com o equipamento, ainda por cima com fortes possibilidades de novas pressões no aeroporto, na fila do nada a declarar, o que comportaria custos adicionais que não me apeteceu ter.
O dia começou cedo, às 5h, para conseguir estar antes das 6h no terminal de camionagem, na Multiperfil. Na véspera, no local, disseram-me que não havia necessidade de comprar bilhete com antecedência para Benguela. Não era verdade. Os autocarros das 6h, 6h30, 7h e 7h30 estavam esgotados. Comprei bilhete para o das 8h30. A fila tinha 3 pessoas à minha frente, mas os bilhetes iam sendo preenchidos à mão, num caderno de recibos com original, duplicado e triplicado, onde ficava inscrito o nome, apelido, contacto de algum familiar, destino, hora de partida e nº do autocarro. Cerca de vinte minutos depois, tinha o bilhete na mão.
Voltámos a casa, vimos as notícias da manhã tentando preencher o vazio que as despedidas prolongadas provocam, e às 8h voltámos a sair para a Multiperfil. Cheguei às 8h25 mas o autocarro já estava a sair. Os funcionários da transportadora que estavam na gare pararam o autocarro, abriram a bagageira onde coloquei a mala e o tripé. São 1000kz. De quê? Da bagagem. Mas já paguei o bilhete. A bagagem é paga à parte. É? Não me disseram nada disso quando comprei o bilhete. Passe-me lá uma factura disso, então. Não tem factura. Não tem? Então não pago. Virei costas e entrei no autocarro. Atrás de mim ouvi Dá 1000Kz para gasosa, senhor, dá.
Entrei no autocarro e disse bom dia, bom dia, bom dia a todos os passageiros, tentando compensar a espera pela minha entrada, apesar de ainda não serem 8h30. Sentei-me na última fila. Estava o Vicente, electricista, a Linda, desempregada, e outro rapaz que confesso não me lembrar do nome, professor primário. Iam para Porto Amboim. Vivem desde pequenos em Luanda, mas iam visitar a terra onde nasceram e donde saíram com os pais em busca de um futuro melhor. Perguntaram por Portugal, se as ruas estavam em tão mau estado como as de Luanda, se também havia tantos musseques e discrepâncias entre a pequena classe muito rica que tudo governava e dominava e uma outra gigantesca que lutava pela sobrevivência. Mais uma vez confirmei que o sentimento geral da população, em todas as conversas que tenho tido, é de revolta pela condução do país. Ao mesmo tempo existe também, mais do que medo das consequências de ter opinião, uma descrença de que valha a pena expressá-la mais publicamente do que naquela conversa.
A sair de Luanda a velocidade do autocarro aumentou e das janelas abertas começou a entrar poeira. Quis fechar a janela do lugar da frente, que ia vazio. Levantei-me e empurrei o puxador com o polegar da mão esquerda. A janela oferecia resitência, talvez por a força estar a ser feita na diagonal em vez da horizontal, mas daquele ângulo não conseguia melhor. De repente, um solavanco do autocarro atirou-me para a frente e só me lembro de ter visto o meu polegar virado para trás num ângulo recto de 90º. Em reflexo sentei-me agarrado à mão, tentando perceber os danos. Se rasguei algum tendão, estou metido numa alhada. Aparentemente não. Mexia o dedo em todas as direcções, embora com muitas dores. Ao arrefecer, as dores passaram para o pulso. Fui trocando mensagens com a H, para tentar ler algum conforto que apetecia ter de outra forma. Põe gelo. Na próxima paragem compra gelo. Não quero dar nas vistas. Prefiro deixar uma frincha das janela aberta e usar o vento fresco para acalmar a dor.
Uns quilómetros mais à frente, estava encostado à berma outro autocarro da mesma companhia transportadora. O motorista parou, saiu para falar com o colega e voltou a entrar. Sem grandes explicações, avisou as pessoas que íamos ter de nos apertar porque teríamos de levar os passageiros do outro autocarro que estava com uma avaria. Ao meu lado sentou-se uma menina de uns 14 anos. Na primeira paragem a seguir, as vendedeiras aproximaram-se das janelas procurando vender amendoíns, batata-frita, bananas, coca-cola, kissângua. Comida e kwanzas eram trocados pela janela. Alguns passageiros aproveitaram a paragem para sair e aliviar a bexiga. Os homens de pé, as mulheres de cócoras com um pano à volta.
A miudinha que ia ao meu lado trazia um enorme saco com roupa e panos. De repente dobrou-se sobre si própria e vomitou tudo o que tinha comprado na paragem anterior. A sandes de carne, as batatas fritas e a coca-cola. Vomitou para um kispo que tinha por cima do saco que trazia entre as pernas, puxando lentamente as pontas para o transformar num saco, enquanto se desenrolava de si própria. Olhei para as minhas pernas. Fiquei envergonhado por só depois lhe perguntar se estava bem. Acenou com a cabeça, visivelmente desconfortável. Encostou a cabeça atrás e fechou os olhos. Ficou assim, a respirar devagarinho e de olhos fechados, uns 10 minutos, com mais gente a observá-la de vez em quando, tentado perceber se estava bem. Depois abriu os olhos, olhou para o kispo que continuava entre as pernas em forma de bola e pô-lo no saco. De lá tirou um pano e limpou o banco e as calças. Estranhei não me ter sugestionado. Estranhei mesmo. Mas observei tudo aquilo como se estivesse a assistir a um filme. Talvez as dores no dedo e a preocupação com os danos me tenham retirado sensibilidade ao exterior.
A viagem foi longa, com uma paragem para almoçar num restaurante de estrada. Havia frango assado e febras. Várias mesas ocupadas. O único lugar disponível era em frente ao motorista, e foi a moça do restaurante que para lá levou o prato. Importa-se que almoce consigo, perguntei. E porque me havia de importar? À mesa estavam mais três pessoas. Duas da empresa de camionagem e um passageiro que horas antes tinha insisitido em contrariar a vontade do viajante do banco atrás, fechando a janela. A discussão aqueceu. Eu vou-te assentar! Eu vou-te assentar! E as mulheres todas à volta a gritar, tentando acalmar os ânimos, Deixa! Ó moços, parem com isso! O rapaz perguntou ao motorista quanto tempo ainda faltava e porque íamos tão devagar. A resposta dos funcionários da transportadora foi pachorrenta. Já viste a responsabilidade que é levar tantas vidas por este caminho? Mais vale chegar um pouco mais tarde mas chegar são e salvo. O motorista preferiu explicar que o horário de serviço dele eram 8h mais almoço e que se o autocarro chegasse mais cedo, óptimo, mas que desde que chegue dentro das 8 horas… O frango assado estava bom, e o meu polegar doia mas não tanto como seria de esperar para uma luxação tão aguda. Os músculos e tendões da mão têm muito mais elasticidade do que alguma vez imaginara.
Depois do almoço começaram a chegar as montanhas, do lado esquerdo. Tive pena de ir sentado no lado direito do autocarro, com o litoral poente na janela. A contraluz tornava essa paisagem muito menos interessante do que a floresta das montanhas. As horas foram passando, mais gente entrando, mais boleias pedidas, mais uma rapariga vomitou, desta vez para fora do autocarro pela janela. Chegados ao Lobito, a 30km de Benguela, seria de esperar que faltasse pouco mais de meia hora para o destino, mas os vários pedidos dos passageiros ao passar pelas casas espalhadas ao longo do caminho foram prolongando a espera. Uma hora. Motorista, pára aqui, por favor. Paizinho, pára a seguir à ponte, por favor. Motorista, preciso sair aqui. Tenho bagagem lá em baixo.
Por fim, cheguei a Benguela, 10 horas depois do início da viagem. À minha espera estavam a Catarina, a Joana e a Andreia, dos Leigos, que juntamente com a Mariana e a Susana me vão acolher na Casa da Esperança. Estavam de boleia com a Rebeca, de outra ONG, para conseguirmos trazer as bagagens. O polegar estava inchado. Pedi gelo. Não há. Estamos sem electricidade desde manhã e o gelo derreteu.
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