
de engel van doel
Estou a aproveitar menos do que queria o doclisboa deste ano. Ter tantos trabalhos pendentes antes de embarcar para Angola limita-me muito a disponibilidade para mergulhar em sessões contínuas de filmes como fiz nos últimos 3 anos.
O doclisboa tem feito um esforço louvável pela divulgação do género documental, trazendo filmes de estilos muito variados e alargando a programação ano após ano. Esta aposta trouxe inevitáveis, mas muito saudáveis e felizes, dores de crescimento.
Uma das discussões mais recorrentes nos corredores dos festivais de documentário é a separação entre o que é cinema documental e o que é reportagem televisiva. De um lado o cinema que observa, que espera pacientemente que a realidade aconteça para que possa ser captada pela câmara quase ignorada pelos retratados através do processo moroso de habituação; do outro, o filme-reportagem que se confunde com televisão, cheio de entrevistas, planos de corte inconsequentes, numa postura mais imediatista, menos paciente, menos cuidada. Enquanto aquele espera pela realidade, este provoca-a. Ao provocá-la, contamina-a, altera-a e torna-a menos interessante, veiculada também quase sempre num resultado estético menos cuidado.
O facto dos meios de produção estarem cada vez mais democratizados – hoje em dia uma câmara HD custa menos de 1000€ e antes os filmes eram produzidos em película, só ao alcance de quem tivesse avultados subsídios – acaba por dar origem a muitos documentários com uma linguagem com menos “escola”, influenciada por um muito maior input televisivo do que cinematográfico. Por razões óbvias. Deixou de ser necessário ser “formado” em cinema para fazer um filme e o cidadão comum é muito mais influenciado pela televisão – sim, estou a falar de mim. Mas a discussão sobre documentário/reportagem pode tornar-se muito irritante pelo pedantismo com que alguns pontos de vista são defendidos. Um mau documentário não é melhor do que uma boa reportagem. Um filme não é bom só porque tem planos com mais de um minuto. Seja como for, eu gostava de conseguir fazer documentários-filme.
Ver muitos filmes no doclisboa implica ver muita coisa chata, mas de vez em quando aparece um daqueles que fica para a vida. “DE ENGEL VAN DOEL”, “Um anjo em Doel”, de Tom Fassaert, um jovem holandês. Começou a filmar a aldeia de Doel em 2005, no projecto final do curso de cinema, quando o foco da imprensa nela incidiu por estar na iminência de ser demolida para a expansão do porto de Antuérpia. Fez uma curta de 30 minutos, imediatamente adquirida pela televisão belga, e logo a seguir se propôs dar continuidade ao documentário desenvolvendo-o a partir da personagem central da sua história.
Com 95% da população a abandonar as casas depois de vendida a propriedade ao Estado, Emilienne, de 75 anos, é uma das últimas residentes da aldeia que se tornou fantasma. A vida gira à volta das reuniões na igreja, onde o pastor anuncia semanalmente o fim dos tempos aos dez fiéis “que são tão importantes como mil”, os encontros com as vizinhas na cozinha, as conversas sobre o futuro e a relutância em abandonar a casa e recomeçar noutro lugar.
Sinto o filme muito mais sobre a morte do que sobre a vida. Emilienne quer viver em Doel, para morrer em Doel. A fragilidade do seu corpo dá-lhe esperança que isso possa acontecer antes da demolição final. Vê os vizinhos conformados a abandonar as casas, outros serem derrotados pelo tempo. As ruas vão ficando a cada semana mais vazias, animadas apenas pelos reflexos das janelas e a sombra das nuvens. É o silêncio que a acompanha.
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