Regresso a Varanasi – dia 3

February 5, 2017 blog, India 0 Comments

A madrugada começou como a anterior, imersa num intenso nevoeiro que não mostra nada para lá de uns trinta metros. Volto aos ghats, junto ao Ganges, procuro os poucos noctívagos que possam partilhar comigo o frio da noite que me obriga a vestir três camadas de roupa. Nunca tinha estado em Varanasi com este frio. Parece outra cidade, parecem outras pessoas. 

Quero fotografar gente que se banha no rio, tenho uma ideia concreta para o livro, para o momento narrativo que estabeleci em Lisboa, na montagem e sequenciação das fotografias. Sinto que fotografar assim é como um trabalho de pescador. Sei o que procuro, mas não sei se vou encontrar. Tenho de lançar a rede. Tenho de percorrer os ghats e esperar. Em cada encontro é uma relação nova que se estabelece.

A zona do ghat central, o Dashaswamedh, a partir da qual a cidade velha se divide em duas áreas distintas a sul e norte, é onde acorre a maioria dos peregrinos. É também onde estão amarradas grande parte das embarcações que de dia servem turistas, peregrinos e locais nas travessias e passeios pelo Ganges. Mais a norte, depois de Manikarnika, o ghat das cremações, é uma zona residencial, sem hotelaria nem restauração, e, mais importante, sem turistas e todo o negócio associado. Aqui também há quem se banhe diariamente no Ganges, mas mais por volta das seis da manhã, ao acordar. Ainda faltam três horas, mas sigo caminho e passo por Manikarnika a ver se encontro o Asutosh.

A primeira vez que passei por Manikarnika foi em 2014, numa viagem assumidamente turística, com a H. Quando se chega a um lugar desconhecido a linguagem não verbal transmite uma insegurança e incerteza que os burlões cheiram com toda a facilidade. Não foi preciso mais do que dois ou três minutos para sermos abordados por um tipo com uns 25 anos, com um discurso passivo-agressivo, a falar com gravidade sobre as tradições e o respeito pela cultura hindu e que não se podia fotografar ali porque dava mau karma, porque era proibido, porque depois vinha a polícia e apreendia a câmara, porque as famílias se revoltavam e nos agrediam, e que só podíamos ver as cremações a partir da varanda de um edifício vazio que ali estava. Todo este discurso já tínhamos lido no guia do Rajastão e Varanasi que nos emprestaram e não nos passava pela cabeça fotografar em Manikarnika, por todas as razões. Lá fomos para o edifício, vazio e sem paredes, até à varanda de onde podíamos ver o espectáculo das cremações e levar com generosos novelos de fumo. Era suposto contemplarmos o mistério da vida, aprendermos respeitosamente como os hindus lidam com a morte, mas o jovem não parava de falar sobre a urgência de lhe darmos dinheiro para nos fazer bem ao karma. O edifício seria uma espécie de abrigo para quem chegava a Varanasi para morrer. O dinheiro seria para essas pessoas, dizia. À nossa pouca receptividade aos desejos dele, o tom da conversa foi rapidamente deixando de ser passivo e ficando mais agressivo até nos expulsar da varanda do prédio para onde nos tinha convidado minutos antes. 

A minha percepção de Manikarnika agora, na sexta visita a Varanasi, tantas horas passadas aqui de noite a beber chá e a conversar, fazem-me sentir este lugar de forma completamente diferente. Mesmo sem precisar, gosto de levantar a câmara ao rosto e fotografar o que vejo. Sei que ninguém se sente desrespeitado, que não me faz pior ao karma e tenho uma leve esperança que um esquemático me aborde agressivamente para que eu possa treinar gestão de conflitos. Nada feito, desta vez.



Subo as escadas que dão para o cantinho do chá onde conheci o Asutosh. Sentado no mesmo banco de sempre, com os pés junto ao uma pequena lareira, está o homem que largou as empresas do pai e as licenciaturas em Sociologia e Direito para abraçar uma vida indigente, mas disponível para as questões da alma. Hey!!! grita o Asu quando me vê. Subo os últimos degraus para o abraçar. Se as despedidas são preparações para a morte, os reencontros sabem a novas oportunidades de vida. Atrás estava o Pramod, o miúdo que trabalha de noite a fazer o chá. Ouvi-lo exclamar Tiago fez-me sentir responsabilidade. Não imaginava que se lembrasse do meu nome. Tenho vivido com estas pessoas há quase dois anos, ao longo do meu trabalho. Vejo e revejo as fotografias que sequencio nas muitas versões que o meu livro já teve, conto as histórias das viagens, os meus encontros com todos, em conversas com amigos e nos workshops que dou. Quando os revejo é como se estivesse a ver actores famosos em carne e osso, mas não imagino que se lembrem de mim e muito menos que saibam o meu nome.

Expliquei ao Asu que o tinha procurado nos últimos dias que cá estive em Setembro. Tive de regressar a Lisboa de urgência e quis dar-lhe algumas fotografias que imprimi, mas não o encontrei. Não quis deixar as fotografias com ninguém porque gostava de as entregar em mão e sabia que iria voltar. Tenho estado com este envelope na mochila estes meses todos, Asu. Outros amigos chegam. Bebemos chá e conversamos sobre o que fizemos nos últimos meses. Passou-se uma hora sem eu pegar na câmara. Estava ali pelo chá, pela companhia, pela conversa. A fotografia vem depois, como resultado disso. Se vier antes, não vai valer a pena. Como imagem é frágil, como experiência é pobre, e nenhuma das duas me inetressa. Já não venho a Varanasi para fotografar. Fotografo porque venho a Varanasi.

Quando finalmente faço o primeiro disparo, o Asutosh ri-se e diz a todos: “O Tiago está sempre a trabalhar, mesmo quando está aqui só a conversar connosco, está sempre a pensar em fotografia”. Por acaso, estava mesmo a pensar nisso, Asu, e em como me tenho sentido cada vez mais diferente de há um ano para cá. Cada vez fotografo menos, cada vez percebo melhor o que não me interessa fotografar, e procuro que a fotografia seja a consequência do que estou a viver, não apenas o que estou a ver. Sabes, quando decidi voltar mais uma vez a Varanasi foi mais para estar contigo do que para fotografar. 

A sério. Eu disse mesmo isto. Em inglês, e fiquei a pensar se não terei soado demasiado teatral. Mas é verdade e todos o sentiram como tal. Sabes, Asu, tenho uma fotografia tua na minha sala e quando olho para ela sinto saudades tuas. E mostrei-lhe qual era, no molho de impressões que acabara de lhe dar.

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