
Rio de Janeiro – diário de um fotógrafo tímido
Acordo cedo e vejo nas notícias que a manifestação de professores da noite anterior, em frente à Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, tinha sido dispersada pela Polícia Militar com recurso a gás pimenta e balas de borracha. Lembrei-me de conversas anteriores sobre a fama de overtraining dos policiais brasileiros e do prazer que tinham de colocar em prática em ambiente urbano – o único onde de facto actuam – o treino militar para cenários de guerra que receberam durante anos, mesmo na mais inócua manifestação, por exemplo contra um grupo professores que reivindica melhores condições salariais e de trabalho.
Aproveito a manhã para pôr em ordem emails, falar por skype com Lisboa, tentar organizar em vão um portfólio para apresentar a quem me proponho para que me contrate. “Tratar da vida”, numa cidade como o Rio de Janeiro ou São Paulo, dificulta-me a vivência que teria enquanto turista, curioso com os lugares, apaixonado por ruelas, becos, botecos e pessoas que vou procurando e encontrado. Farto de emails e adendas ao portfólio, saio para visitar a Lapa, na parte antiga da cidade, onde ainda não tinha conseguido ir.
O ônibus leva-me directo. Talvez por continuar a viver o Rio sozinho, por me avisarem que os assaltos são mais violentos e frequentes aqui do que em São Paulo ou por andar com um princípio de tendinite no pulso direito, continuo a deixar a máquina na mochila. Incomoda-me sentir um receio que não senti em São Paulo, em Angola ou Moçambique e forço-me a contraria-lo. Experimento no ônibus, olho em volta, tudo tranquilo, dá para tirar a máquina. As dimensões generosas do objecto não suscitam curiosidade. É paranoia minha, penso. Disparo avulso, sem paixão nem entusiasmo. Ao aperceber-me do ônbus aproximar-se do destino, a máquina volta para a mochila.
Na Lapa vejo uma cidade antiga, de outro século, com edifícios baixos e estrutura de madeira. Lembro-me de Praga e imagino as ruas restauradas, tornadas parque de atracção turística, sem alma e verdade, por natureza da cosmética, como troca manteiga por margarina. Aqui sente-se a vida a brotar do subsolo, na mistura da decadência do lugar, entre casas destruídas e abandonadas, lado a lado com botecos onde clientes habituais passam a tarde a beber cerveja, restaurantes com refeições caseiras servidas descuidada, mas carinhosamente, em travessas e pratos de higiene duvidosa, barbearias e cabeleireiros com ar de crise, lojas de ferragens e drogarias, tudo junto numa trama quadriculada de ruas cruzadas por carros velhos tossindo monóxido de carbono no limbo entre as normas internacionais de saúde pública e o charme da antiguidade, passeios percorridos por moleques de chinelo e calções rasgados, homens de tronco nu que intervalam o percurso durante horas sentando-se nos degraus das portas, mulheres de bunda cheia que levam sacos de compras ou crianças pela mão, vendedores ambulantes com core business separados entre água de côco, pastelaria diversa, salgadinhos, refrigerantes ou milho cozido. Não é Praga é Rio de Janeiro. As árvores disputam lugar com os passeios, com teimosia centenária, levantando-os do chão, e os ramos retorcem-se no ar, dançando um chorinho encarquilhado em super slow motion, fazendo sombra verde e fresca a quem passa.
Deixo-me ficar num boteco com o intuito ouvir histórias e fotografar. Se ganhar coragem para tirar a máquina, se conseguir disfarçar a timidez que me tem tolhido nos últimos dias. As prateleiras trepam as paredes do chão ao tecto ao longo de uns 4 metros e ostentam com orgulho garrafas de licor, cachaça e whisky, misturadas com outros produtos de consumo menos nobre, como água ou coca-cola. Penduradas ao centro da sala estão as bandeiras do Brasil e de Portugal. Peço uma água ao balcão para meter conversa e pergunto o que está a fazer a bandeira verde e vermelha ali. Aponta-me para um velho, sentado a um canto, com ar absorto. Meu pai nasceu em Portugal, diz-me, veio para o Brasil há muitos anos e eu os meus irmãos já nascemos cá. Sento-me na mesa junto a ele, a conversa passa pelo Minho, falo-lhe dos Arcos de Valdevez do meu pai, mas o combustível do diálogo evapora-se entre um tímido sem mais assunto e um velho cansado e alheado.
As palavras animam-se quando chega um morador que se junta a nós. Fala sozinho, entre as concordâncias sonolentas do patriarca luso e o olhar fixo do português mais novo que continua a pensar como vai encontrar maneira de tirar a máquina da mochila. Dois filhos, olhos verdes e cara marcada pelos 46 anos passados a trabalhar desde os 10, ainda menino. Fala desordenadamente. Não percebo se ele é assim mesmo, se tropeça no álcool, ou se é a minha dessintonia geral que atrapalha a compreensão do que diz. Conta que teve um problema recente com o chefe, no meio de todos os temas que lhe saem dos lábios, naquele monólogo caótico e colorido que tem, parecido com uma trip de LSD, como um mágico que tira coelhos de uma cartola, flores de papel da manga ou ovos de trás da orelha. Trabalha para uma operadora telefónica, a montar os cabos que levam telefone, televisão e agora internet a casa das pessoas. Uma cliente ficou sem internet em casa e há um mês que andava em vão a reclamar. Todos os funcionários que foram ao local, na Rocinha, recusaram o serviço: subir a um poste com 5 metros de altura para restabelecer a ligação. O problema, dizia, era ser divertimento dos moleques atirar a matar a quem subisse ao poste. Dez recusaram o frete e no fim mandaram-no a ele, que nem sequer é daquela zona.
Quando lá cheguei, diz, e olhei para o poste, percebi o problema, uma bala sai de qualquer lugar por diversão, ninguém vai sequer saber quem foi, e meus dois filhos ficam órfãos. Liguei para o meu chefe e contei a situação. Ele gritou do outro lado e disse que queria o problema resolvido no próprio dia. Respondi, oh chefe, não me vai levar a mal, mas esse trabalho não vou fazer, se quiser que a senhora tenha serviço ainda hoje suba o senhor ao poste. Pergunto se as coisas continuam assim bravas no Rio. O rosto de 56 anos envelhece repentinamente, sulcando ainda mais as rugas grossas que se desenham para me responder. Não está bravo só na favela. Ali quatro quadras acima, junto à Câmara dos Vereadores, estão soltando bomba desde a hora de almoço, na manifestação dos professores. Sinto o clique, junto dois mais dois, e despeço-me cumprimentando todos e prometendo regressar no terceiro sábado do mês para uma rodinha de samba. Coisa para eles, não para turista, garantem-me após a minha insistência.
Volto às ruas da Lapa, subo três dos quatro quarteirões até esbarrar na primeira barreira policial. Como nos estádios de futebol, os civis mostram um cartão para entrar. Faço-me despercebido e pergunto se posso passar. Sou turista, só quero continuar meu caminho. Por aqui não pode não. Não é seguro, está havendo uma manifestação lá à frente e só deixamos passar quem trabalhar num desses edifícios. Pergunto como apanho o metrô para continuar a sentir o cidadão afável atrás da farda da polícia. Sempre me fascinou a existência de um homem, de uma família, de uma história de vida e de opções, por trás do agente de autoridade austero e zelador que os Estados nos apresentam como garante da segurança pública. Pelo caminho sigo vendo outros policiais, nos rostos uma mistura de apreensão descontraída, o peso dos corpos distribuído de forma desigual entre as duas pernas. Entre eles, uma mulher-polícia que fico buscando o olhar, procurando contacto visual, escrutinando a mulher-sexual por baixo da farda, adivinhando a moça no flirt numa mesinha de boteco com cerveja a copo. Não dá. O peso da farda vence, mata qualquer sedução, e continuo descendo a rua.
Ao virar a esquina oiço os mantras da manifestação. A palavra de ordem é pela educação, pela melhoria das condições de ensino, há políticos visados nos cânticos, pedidos de demissão. Aproximo-me e o ambiente é entre a festa e a expectativa. Dentro da Câmara dos Vereadores está decorrendo uma votação crucial para o futuro da classe e dos modelos de ensino, o ajuntamento procura fazer pressão para que uma comissão de professores seja recebida. Tiro finalmente a máquina da mochila e enrolo-a no pulso. Sinto a tendinite a picar mas o entusiasmo é mais forte. Dizem que a reunião devia ser, por lei, à porta aberta. Os portões traseiros da Câmara estão fechados a cadeado, no túnel de acesso está uma equipa de polícia de choque. Grita-se que a polícia defende os criminosos, que a lei não está sendo cumprida.
Numa das janelas do edifício abeira-se um homem a fotografar. Corre a teoria da conspiração de que é alguém a completar as fichas políticas de cada um dos manifestantes. Pedem-me para fotografar e lhe apanhar a cara. Acedo, consciente que outras centenas de máquinas fotográficas no local estarão a fazer o mesmo. Vários manifestantes usam máscaras de gás, de todos os géneros, das mais sofisticadas às rudimentares, daquelas que os engripados usam em Tóquio. Alguns usam capacete de skate, provavelmente para proteger das balas de borracha. Penso que devia preparar-me para isso, tiro um lenço da mochila, único adereço que tenho, manifestamente inferior na eficácia comparado com as máscaras de gás de viseira completa que alguns têm preparadas ao pescoço.
Num repente, aparece um jovem, corpo de 20 anos, tronco musculado e uma chave inglesa gigante nos braços. Aproxima-se e carrega os 10kg de ferro no cadeado que tranca o portão da Câmara. Um bruá aumenta nos manifestantes, as opiniões dividem-se. Há quem aplauda, incite, outros dizem-me isso é policial infiltrado para causar distúrbio. É a turma do Black Bloc, dizem outros, vêm só para estragar isto. A multidão racha-se. Uns recuam vários metros, temendo a resposta da PM. Sente-se uma mistura de medo e euforia no ar, alguém olha para mim e diz para não recuar para a rua que me fica nas costas, que está uma fila de PM preparada para investir dali. Sinto a emoção da partilha, a força da solidariedade de quem se junta por uma causa, muitos conhecidos entre si, outros não, todos cientes da rede necessária para a sobrevivência do grupo, de passar a palavra ao próximo, de sentir união e fraternidade no do lado. A palavra de perigo corre depressa, mas mais gente se acerca do portão e abana-o violentamente para a frente e para trás, como um exército a assaltar um castelo, séculos atrás.
A euforia que ganhou ao medo naquele lugar, alimentada pelo segundos de ilusão de tomada da Bastilha, é interrompida pelo estrondo dos petardos lançados pela Polícia Militar. Gritos e correria, para todos os lados, para onde houver espaço livre. Não corre, não, nós estamos aqui por vocês, grita um dos jovens de lenço na cara, um dos tais que se diz serem do Black Bloc. O som dos petardos assusta-me, não o distingo das balas de borracha. Imagino-me alvo e corro para trás de um quiosque. O cruzamento em frente ao portão das traseiras da Câmara está agora deserto. Os petardos continuam a rebentar e no chão caem agora umas cápsulas de onde sai um fumo branco. Segundos depois sinto o nariz e a garganta a arder. Deve ser isto o gás pimenta, penso enquanto corro na direcção da rua onde me tinham dito estar a PM. Ao fundo, confirmo a informação. Estão preparados para investir, por trás de uma barricada de ferro que tombará para o nosso lado mal tenham ordem superior. Olho em volta e vejo vários fotojornalistas. Estão identificados. Junto-me a eles. Passa um minuto, dois, o ruído da manifestação e dos petardos afasta-se. Junto à Câmara dos Vereadores continuam corajosos alguns jovens. Da nossa direita galga o chiar de pneus no asfalto, anunciando a chegada das carrinhas da Polícia de Choque. Fodeu, agora fodeu, grita um dos fotógrafos do grupo. As cápsulas de gás pimenta sobrevoam-nos e caem no meio da rua. Corremos para a entrada de um prédio, todos levantam a mão esquerda e a máquina na outra mão, talvez para se identificar, penso. O vento entra pela rua no mesmo sentido donde vinha a polícia de choque, afastando o gás da nossa zona. Desajeitamente, enrolo o lenço à volta da cara. Algumas portas dos prédios abrem-se e de lá saem a correr os que ficaram à espera que a confusão acabasse. Não acabou e sente-se medo no olhar das pessoas.
O epicentro da acção muda de local e sentimo-nos em zona morta. Caminhamos a passo apressado para a avenida principal, para onde olha a fachada principal da Câmara dos Vereadores. Os manifestantes continuam a espreitar de várias ruas perpendiculares. Estamos atrás da Polícia Militar, toda em posição de atirar. Fico na expectativa de perceber se o ataque à manifestação vai continuar ou se é apenas uma contenção. Alguns manifestantes ainda deambulam por perto. Aproveito a boleia e corro para trás de um quiosque, no meio da avenida. Erro estratégico. Os PM estavam a segundos de lançar novo ataque de gás pimenta. As cápsulas caem a poucos metros. Chuta pra longe, grita-se, e alguns atrevem-se a pontapear as cápsulas para onde ninguém está. Vejo o fumo a afastar-se, continuo com o vento a meu favor, penso, mas nova vaga de cápsulas chega, desta vez entre mim e a entrada da avenida. Os olhos ardem imediatamente, choram, fecham, corro contra o vento, tentando fugir das cápsulas. Não vejo, tenho os olhos cerrados apenas para não tropeçar em nada e corro o mais depressa que consigo, a respiração suspensa para não queimar mais as fossas nasais. O rebentamento dos petardos continua a ouvir-se, até que chego a uma praça onde já não há fumo. Peço ajuda, digo que me ardem os olhos. Procuro uma equipa de primeiros socorros que tinha visto no meio da multidão, minutos antes. Ninguém. Haverá casos mais graves, lembro-me de quem é alvejado com spray directamente na cara. Pergunto às pessoas o que posso fazer para passar o ardor nos olhos. Uma mulher borrifa-me a mão e diz-me para ficar a cheirar. O que é, pergunto. Vinagre. E para os olhos? Tem de esperar que passe. Cheira o vinagre, tem de esperar que passe. Tenho água aqui, ajuda? Não, não funciona, espera que passe, cheira o vinagre. Sento-me no passeio, a cheirar o vinagre. Dói-me a cabeça, não sei se do gás.
Decido não voltar ao cenário mais duro. Vejo um rapaz com uma máscara e pergunto onde a comprou. Lá na Lapa, naquelas lojas de ferragens. Apesar do desagrado do ardor, acrescento a máscara à check list mental para uma experiência do Rio mais excitante.
Um vendedor ambulante, de tronco nu, aparece ferido. Ia a passar e foi alvejado com uma bala de borracha. À entrevista da televisão garante ter sido à queima-roupa. Ia a pedalar no carrinho de refrigerantes, impossível ter sido confundido.
A manifestação naquele local apresenta características diferentes. As ruas continuam cortadas, mas o diálogo entre polícia e manifestantes parece mais fácil. O som dos petardos é agora longínquo a banda sonora que passa continuamente vem das pás dos helicóptros que sobrevoam o bairro. Alguns cidadãos apelam à polícia para um comportamento diferente. Um jovem de uns 20 anos, com um invejável dom da oratória, discursa perante uma fileira de polícia de choque. Lembra-os que antes de serem polícias são pessoas, são homens e mulheres, com família, também eles vítimas da corrupção governamental, que a luta dos professores por melhores condições de ensino é também em defesa dos seus filhos, que aquele ataque que fazem aos manifestantes é uma má herança que deixam aos filhos, que pensem nisso, que se perguntem porque fazem o que fazem. As palavras saem-lhe embrulhadas num calor contagiante, quase capaz de fazer despir a farda aos policiais. Os olhares dos polícias vacilam. A cena é forte e comove. É uma alternativa da sociedade que vivemos que se propõe, muitos percebem e sentem pena por estar do lado errado da manifestação. Mas são pessoas que ali estão atrás dos escudos, dos cassetetes e dos coletes anti-bala, sim. Com família, mulher e filhos, e é dali que recebem o salário para os alimentar. A farda continua vestida. Uns entendem aquele discurso, outros espezinhariam-no se a impunidade fosse total, se a invisibilidade das suas acções existisse.
As dezenas de máquinas fotográficas irritam um dos polícias. Força um sorriso quando o fotografo e diz-me mostra prá tua irmã, ela vai gostar. Tento falar com ele. Impossível. O oficial de serviço afasta-me, explica-me que está tudo bem, que ele está alterado, mas para eu não falar com ele. De quando em quando alguém é detido. Uns alegadamente por atirarem pedras. A linguagem não verbal de alguns dos polícias que arrastam os detidos torcendo-lhes o braço mostra satisfação e divertimento no ofício. Fico a pensar que por um detalhe na vida não ficaram do outro lado da barricada, a apedrejar a polícia. Ao segundo negro a ser detido grita-se racismo, isso é racismo. Um homem branco, louro, de óculos de massa, passa por um grupo de polícias. Trocam palavras, o homem cospe no chão, mostrando desprezo. Um dos polícias responde na mesma moeda, deixando na calçada uma segunda mancha. Os polícias atrás avançam e detém o homem por desrespeito à autoridade. O cuspo de uns homens é mais ilegal que o de outros.
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