Rita Morais Moreira

July 15, 2014 Photomaton 0 Comments

Lembro-me, como se tivesse sido em câmara lenta, da primeira vez que olhei para a Rita. Foi há 20 anos, a entrar para uma aula de piano, e foi também a primeira vez que a Rita olhou para mim, a sair de uma aula de piano. Abrimos a porta ao mesmo tempo, eu empurrando, a Rita puxando, e os olhares cruzaram-se, o tempo parou, esticando um momento que não passou de dois segundos.

Passaram vinte anos. Outros vinte hão-de passar e a amizade que me une à Rita ficará para sempre no Olimpo, onde todas as amizades deviam estar. Não precisamos falar todos os dias, trabalhamos na mesma rua e até podem passar dois meses sem tomarmos sequer um café, mas ela sabe como eu estou e eu sei como ela está. Fomos irmãos gémeos noutra vida, provavelmente. Somos amigos nesta vida, e coisa mais preciosa no mundo não há.

Há uns anos escreveu-me um email com um sonho que teve, lindo. Cheguei a perdê-lo uma vez e dei conta disso quando o quis reler. Reenviou-me e guardei-o, mas hoje perguntei se o podia publicar. É mais seguro ficar aqui do que na minha caixa de email.

[…]

Estava a andar de bicicleta pela cidade e descia uma rua degradada e feia. Alguém me dizia que esta cidade era pequena e sem vida, alguém que falava apenas na minha cabeça como uma voz que permanece de uma conversa recente quando essa voz nos diz algo realmente importante que ouves como “a cidade que amas afinal não é tão bonita”.

Com estas palavras na cabeça dirijo-me a um lugar antigo da cidade por entre parques e condomínios antigos numa rua que une duas colinas. Vou dar a um bairro antigo no topo da colina onde há uma vila como a tua mas com uma estrutura completamente diferente. Parece quase uma estufa com armação em ferro e longas janelas difíceis de lavar por onde entra difusa uma luz leitosa e azulada. Um emaranhado de escadas preenche o espaço vazio e no patamar abaixo do qual me encontro existem bancas de um mercado onde se vendem essencialmente roupas antigas, acessórios, jóias, livros usados. As bancas são compridas e não têm cobertura, apenas uma estrutura simples e despretensiosa.

O espaço está praticamente vazio de pessoas, muitas das bancas não têm sequer vendedores e os objectos que estão pendurados parecem suspensos no nada. Numa das bancas está uma mulher com cerca de 50 anos, cabelo comprido negro, chapéu e um vestido comprido e escuro que vende vinis em 2ª mão. Tem mãos magras e manuseia os discos com todo o cuidado mas como se dançasse com eles. Está a tocar baixinho uma música do Fela Kuti que se espalha suavemente pelo espaço.

Procuro um sítio para guardar a bicicleta mas as escadas e passagens são muito estreitas e a bicicleta impediria a passagem de pessoas.

A música acaba e enquanto a mulher não muda o disco ouço uma música diferente que vem de uma das janelas.

É uma espécie de mistura de chorinho com bossa-nova. Uma melodia rápida sobre uma base lenta, com as oscilações e quebras que a música brasileira resolve tão bem. Olho para cima e vejo uma janela aberta com um pássaro pousado olhando atentamente para o interior.

Tento descobrir a porta do prédio e entro para umas escadas de madeira ovais com parede branca e um corrimão trabalhado em ferro e madeira envernizada. Subo 2 andares com a bicicleta na mão e bato à porta onde a música já é bastante nítida.

Tu abres-me a porta vestido com umas calças de pijama às riscas azuis e brancas e uma camisola de manga comprida verde amarelada completamente debotada e esgaçada. Tens o cabelo encaracolado, mais comprido do que costume e estás mais velho, com alguns cabelos brancos e uma expressão mais cansada mas infantil. Os teus olhos são tristes mas sorriem. Olhas-me como se estivesses à minha espera ou como se a minha presença não te surpreendesse, sorris e dizes: “esta música é maravilhosa! Ouve!” e desatas a dançar contigo próprio como se fosses o teu próprio par. Os teus movimentos não são bem uma dança.. é como se o teu corpo não tivesse vontade própria e seguisse fielmente o ritmo, a melodia e as emoções do poema.

Como quem dança consigo próprio, seguras nos braços algo imaginário e muito pequenino, como se te tivesses por um fio nos teus braços e tens os olhos fechados num sorriso incrível que por vezes, porque a música revela sofrimento, se fecha num suspiro que termina num novo sorriso de puro deleite. Rodopias devagarinho sobre ti próprio, dás passos pequenos para trás e para a frente, encolhes os ombros e mexes as mãos como se tentasses agarrar a música.

E eu fico de bicicleta na mão a olhar para ti a ver-te dançar.

As tuas janelas dão para o pátio e, do outro lado, para uma rua larga com algum movimento. Os prédios do outro lado dessa rua são estranhamente majestosos e fazem-me lembrar o museu Thysen-Bornemisza em Madrid com pequenos jardins cercados em frente e passeios largos onde algumas pessoas caminham calmamente. O carros passam ao ritmo de um semáforo que se encontra perto.

E eu estou a olhar para ti e para a rua e para o pássaro que está pousado na janela que dá para o pátio e que vai inclinando a cabeça ora para um lado ora para o outro.

Estou feliz por ti e enquanto me apercebo disto o sonho vai-se dissipando e acordo devagarinho.

[…]

Photomaton XCIII
Rita Morais Moreira
14 Julho 2014

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